quarta-feira, 15 de junho de 2016

Finalmente a fritilária, as novidades da poesia experimental, e o que mora na Cabeça dum Velho (Cont).

[Esta princesa é a fritilária no seu esplendor singelo, mal se expõe antes de abrir. Porém o que me esperava era a desolação que adiante se verá. 
É o que faz uma Primavera traiçoeira. E ele há tantas|] 

Já regressei das lembranças dos Açores, e do patriarca Zé Pavão a escrever à sombra da glicínia, e das gentilezas da Suzete Melo. O gato escondido já foi à sua vida, com o rabo dele de fora. Mas é num turbilhão de emoções contraditórias que vou a pé à procura de almoço.
No estanco do velho Júlio barbudo mato a galga, com o seu arroz de carqueja, igual ao que era. O Júlio tinha presença marcada na Feira Popular, a Entrecampos, com os seus petiscos da Serra. Hoje reduziu actividades, passou a esquina a uma loja de chocolates modernos e mantém-se na betesga, nesta casita de pasto. Mas lá estão, pendurados nas paredes, uns soldados que vêm de Santarém montados em Chaimites e Panhards, à procura de Lisboa num mapa das estradas, e da vida que neles não vem.
Subo à Serra, numa curva aparece a Cabeça do Velho, a mirar ao longe o Caramulo. Só há uma força capaz de colocar esta cabeça no pedestal em que está: a força e a paciência dum glaciar. Na glaciação de Würms, terminada há uns dez mil anos na Europa, a cabeça deste Velho veio andando, rebolou e tomou formas e ficou aqui parada. Seria um pálido testemunho do que é a eternidade, o silêncio e a maçada dela, se eu lho fosse perguntar. 
Mas não quero saber disso. Fico-me a olhar o Velho, e a pensar que viu andar por aqui os homens de Cro-Magnon e os de Neandertal, paredes-meias. Os de Cro-Magnon acabaram por se impôr, não sei bem se com vantagem dos herdeiros. Inventaram uma linguagem e ganharam, aprendamos-lhe a lição.
No recanto do Rossim a fritilária lá está. Mas tristonha, friorenta, acabrunhada coitada.Vê-se bem que a austeridade lhe chegou também! Lavo o olhar na paisagem, ao longe diviso a Guarda. e parto, que ela me espera. Com atraso certamente, lá haveremos de chegar.
O artista contemporâneo reside em Mérida, a magnífica, e vem de Salamanca, a ilustrada. Entre actividades múltiplas pratica a poesia experimental. E projecta num ecrã uma série de imagens de objectos, ou artefactos manufacturados. Cada objecto tem um nome, que é o título do poema: dois cartuchos de carabina de assalto, um quadrado de tricot com duas pontas, que hão-de ser primeiro e último verso, uma lâmpada sem filamento e alguma coisa lá dentro, o poeta com dois ovos a obturar-lhe os olhos, quatro fotos do poeta, duas com olhos fechados, duas com eles abertos...
O auditório assiste. E eu tenho que esperar pela sessão do Cineclube, que me há-de mostrar esse espanto da Vivian Maier, a ama-fotógrafa do quotidiano de rua, enquanto viveu em Nova Iorque. À meia-noite volto a casa compensado.