Há tantos anos que nem sei já quantos (e muito menos a propósito de quê) subi a escadaria e entrei no solar do conde. Estive no salão do preto, de que não guardei imagem. Mas lembro-me muito bem do figurão do preto, ali à entrada. Era um boneco de pau, de libré pintado às cores, muito mais alto do que eu. Tinha uma carapinha escura lá em cima, e quando quis ver-lhe a cara nem pestanejou. Não demorei a sair.
Hoje o conde já não vive aqui, que já morreu há muito. Não vai à missa ao domingo, de boina basca a guardar-lhe a cabeça. Nem joga xadrez com o padre que também já não existe.
Na outra margem do ribeirinho em frente mandou fazer um chalé, quando a condessa morreu. E albergou mais tarde nele a criada preferida, que o serviu até à morte.
Um dia o preto foi levado pelos herdeiros, e foi acabar, quem sabe, nalgum antiquário, trocado por bom dinheiro, como eram os bons escravos. Ou então ficou aqui, de sentinela alerta durante anos, até que o solar foi saqueado por um bando de meliantes que o deixaram vazio. Levaram também o preto, se cá estava.
O povo soube isso tudo mas ficou calado, porque o solar foi sempre um mundo distante. Havia as terras que trazia de renda, e o chapéu velho para tirar da cabeça sempre que o conde passava, e um grande silêncio muito antigo.
Hoje o quinteiro é o logradouro dos gados da dona Rosa, é onde dormem. O matagal dos buxos, onde havia alamedas muito frescas e já foi de interesse público, é uma selva impenetrável. E quando raramente o conde novo cá passa numa pausa dos negócios, recusa-se a entrar lá dentro, que não gosta de ruínas. O povo nem sequer tira o chapéu, prefere ir colher morangos às quintas dos Alpes.
Dizem que o mundo nunca está parado. Eu passo e penso que só a dança mudou e os volteios do seu baile. Eternos só os ciprestes que além estão, quatro agulhas apontadas para o céu.