quinta-feira, 14 de abril de 2011

Mais vale tarde... 16 - Les jeux sont faits! Deo gratias!

(…)
Na França o clero contribuiu para a derrocada geral. Pregava a sedição. Fomentava a desconfiança no espírito do povo e incitava-o a desprezar os princípios sobre os quais se edificara a República.
Tratou, durante anos, de incutir no povo francês a ideia de que ele iria expiar um dia, num horrível mar de sangue, os pecados da “república leiga e ateia”. O jornal diocesano Croix du Nord recomendava aos crentes que rezassem, na ocasião em que os alemães martelavam as fortificações belgas: “Ó Senhor, mais uma vez nos castigais pelos pecados da nossa estremecida Pátria, pelos pecados dos nossos legisladores, cuja loucura criminosa os levou a negar o Vosso nome, perseguir a Vossa Igreja, espoliar os Vossos servos, educar as crianças no ateísmo; pelos pecados dos eleitores, que elegeram representantes sem religião, tornando-os assim seus cúmplices. Faz que compreendamos, ó Senhor, as consequências terríveis de termos usado do voto…”
Esta prece foi deixada propalar livremente, tanto pela censura militar alemã como pela francesa!
Foi por um castigo divino infligido à França que os alemães pegaram em armas novamente em Setembro de 1939: um castigo colectivo e bem merecido, predito aliás pelo clero, havia anos, especialmente naqueles anos que se seguiram à separação da Igreja e do Estado, “um insulto a Deus, merecedor da mais severa punição”, conforme disse o Cardeal Arcebispo de Bordéus. Para a Igreja Romana, que se diz herdeira do pacifista galileu e dos mártires que recusavam pôr-se ao serviço de César para matar, a guerra tem o triplo carácter de castigo justo, expiação e reparação providencial. “Logo que um povo perde a virilidade e o amor ao sacrifício, ou quando se faz tirânico, oprime a consciência e ameaça tolher o caminho à verdade divina na terra, chama Deus uma outra nação para ferir o povo leviano, corrupto e perigoso, numa terrível execução da justiça divina”.
Foi nestes termos que um dos mais populares escritores católicos da França, Léon Gautier, vaticinou a blitzkrieg, dando a Adolfo Hitler o papel dum grande vingador ao serviço da justiça divina. O povo francês nada podia fazer senão aguardar pacientemente a provação. A guerra viria e os franceses teriam que perdê-la, segundo as previsões do clero, pois cumpria que se prostrasse por fim e, se possível, que eliminasse a Terceira República, esse execrado instrumento da Democracia. Daí as felicitações de Pio XII a Philippe Pétain, a quem o Papa chamou “o mais lídimo representante das nobres tradições da sua raça”, poucos dias depois de jazer a república por terra e de o marechal ter decretado, entre as injecções de hormónio paratireoídeo que fazia de meia em meia hora, a morte da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, por ordem de Hitler, Mussolini e Franco.
A reacção militar-clerical francesa, sustentada pela alta finança, os bancos e a grande presse, valeu-se da revolta espanhola contra a República como o meio mais eficaz para embargar, obstruir e finalmente derrubar o governo da Frente Popular no seu país. (…)
Ao mesmo tempo recrudescia a insolência do comando do exército, que proibia aos soldados, em ordem do dia, ler os jornais partidários da Frente Popular. Em duas ou três ocasiões, generais eminentes recusaram tomar parte em conferências sobre assuntos de aviação com Pierre Cot, o ministro do Ar, a quem a reacção votava uma aversão especial, provavelmente porque ele instava pela criação, na França, de uma força aérea capaz de contrabalançar a de Goering. Em St. Cyr, o comandante da academia militar francesa desatendeu o pedido do governo para que fizesse hastear a bandeira a meia-haste, na manhã em que se teve a notícia da morte do ministro do Interior. Os cadetes, que estavam reunindo no campo de paradas para irem assistir à missa, aplaudiram o comandante quando este mandou içar a bandeira “mais alto que nunca”, pois “a França tinha agora um miserável a menos”. O ministro falecido, Roland Salengro, fora um dos partidários mais salientes da intervenção na Espanha”. (…)
Alguns soldados de tendências socialistas contavam casos espantosos de ameaças de morte por parte dos seus oficiais, se eles fossem leais ao governo em certo momento crítico que se previa abertamente. E não só os soldados: falei com um oficial, tenente-coronel da guarnição de Montpellier, que não hesitou em dizer-me que a sua propaganda fascista lhe custara o posto. “Mas fui transferido para Metz. Comando ali o arsenal. Acho que, quando soar a hora, o arsenal e o seu conteúdo valerão para La Rocque e Weygand mil vezes mais do que a reles guarnição socialista de Montpellier. Também em Metz inventariámos todos os soldados de acordo com as suas convicções. Creio que teremos de eliminar um milhar deles, quando recebermos o sinal”. (…)
Blum não ousava enfrentar a conjuntura duma luta armada, porque sabia que, com o comando do exército nas fileiras contrárias, seria para os operários um esforço vão, bem como um convite virtual a que Hitler invadisse a França. (…) “Além disso – ajuntava – quem pode afirmar que os nossos opositores reaccionários não chamariam Hitler, o homem que eles tanto admiram, para restabelecer a ordem? Porventura Thiers não chamou Bismarck em 1871, para esmagar a Comuna?”


[Lá como cá,“o povo não imagina do que são capazes as classes poderosas, quando se trata de manter ou restaurar privilégios e mando”.
Pétain seria em breve o chefe do governo colaboracionista de Vichy. E a França, um farol de luz há 150 anos, mergulhou num crepúsculo e numa decadência de que não mais emergiu.]