segunda-feira, 4 de abril de 2011

Mais vale tarde... 11 - Cá e lá

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Não era a primeira vez que eu ia à Península Ibérica. Estivera em Madrid, ao serviço da North American Newspaper Alliance em 1931, pouco depois da proclamação da República, para entrevistar o sr. Manuel Azaña, chefe dos liberais da ala esquerda. Mais uma vez, por ocasião da cruel repressão da revolta dos mineiros asturianos pelo governo reaccionário de Alejandro Leroux, errara por aquele país esbraseado de sol, onde poucos passos além da capital, na direcção de Toledo, tinha a impressão de haver voltado ao deserto africano. (...)

Ao atravessar aquele país de automóvel, ou mais frequentemente num vagão de terceira classe, de madeira, vagaroso, quente como uma incubadora, (...) não tinha fim o meu espanto de que esse fosse o país que em seu tempo formava o coração e o centro nervoso de um dos impérios mais poderosos que a humanidade tem conhecido. Que desgraça atingira o povo espanhol para fazer-lhe perder o senhorio do universo? O sol não se punha, nos domínios de Cralos V. Os meus antepassados da Holanda e da Flandres tinham sido vassalos dos fidalgos espanhóis. Por que foram Alba e Sidónia, Cortés e D. Juan alijados da história por uma república adventícia do escuro setentrião, um punhado de burgueses calvinistas, por que fora a Espanha expelida dos mercados mundiais, um após outro, até que, despojada das suas colónias, descambara para a condição de uma potência de terceira ordem na Europa?

Seriam aqueles lavradores andrajosos do planalto castelhano, de expressão sombria e corpo ossudo, o mesmo povo que enviara conquistadores e armadas para empolgar o fabuloso mercado da América, as especiarias, as gemas e as madeiras preciosas da Índia e de Catai? A Espanha tinha amontoado tesouros, circum-navegara o globo, hasteara a bandeira de Jesus e Maria nos mais afastados recantos da terra; espanhóis haviam desvirginizado as pampas da Argentina, as florestas do Peru, trazido para a sua pátria o ouro de aztecas e toltecas, até que a península ficara a estourar de riquezas e esplendores. (...) Onde se escondera a glória? Onde o império?

A Espanha que eu via agora, a antiga senhora dos sete mares, era um país de campónios miseráveis, analfabetos, dominados pelos padres, esfarrapados, simples peões explorados até aos ossos. Ao pé de catedrais e palácios de beleza perfeita e maravilhosa opulência, em Sevilha, Múrcia, Granada e Valência, (...) fiquei atónito por encontrar sujidade, fome e vício em cortiços onde fervilhavam miríades de crianças semi-nuas.
Quem possuía aquelas terras ricas, nas redondezas de esplêndidas cidades, que poderiam ter saciado a fome e proporcionado o bem-estar, se não a abastança, aos inumeráveis famintos que erravam pelas ruas? Reduzido número de proprietários ausentes, os grandes de Espanha, os señores, que passavam o inverno em Biarritz ou em Paris.
Quem explorava essas vastas propriedades, as florestas e as granjas? Era a Igreja, que dirigia virtualmente a cultura de frutos cítricos na Andaluzia, desde a plantação até à exportação, desde os bancos até aos caminhos de ferro e as linhas de navegação.

Eu tinha visto procissões religiosas em 1931, uma em Sevilha, outra em Saragoça, e outra ainda em Cáceres, cidadezinha que contava trinta e oito mosteiros, porta com porta (...). Nessas procissões carregava-se uma estátua da Virgem com diadema de ouro, literalmente coberta de jóias, diamantes, rubis, esmeraldas e outras pedras preciosas, inclusive condecorações e estrelas iguais àquelas que os generais vitoriosos e os diplomatas trazem pregadas aos uniformes de gala. Padres de paramentos dourados caminhavam sob baldaquinos de púrpura e damasco, balanceando turíbulos de prata e filigrana, precedidos de bandeiras de seda e báculos cravejados de pedras preciosas, cercados de acólitos cobertos de rendas, caudatários e meninos de batina roxa que carregavam relicários magníficos, seguidos dum cibório do valor de três milhões de pesetas, que feria a vista como se fora um cacho de diamantes. (...)