Aqui há cinquenta anos, no dia em que os ecos da mudança começaram a alastrar pela Guiné adentro, numa espécie de maré enchente que as notícias da BBC traziam lá de longe, logo um vento de esperança agitou os corações cansados daquela gente toda. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem é que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? Parecia pertinente a questão.
Já há muito tempo que nada se mexia no teatro, a não ser os aviões e os caranguejos cegos, que trotavam nas bolanhas durante a maré vaza. Mesmo assim, era sempre com pezinhos de lã que o faziam, não fosse algum diabo tecê-las. E demónios tecedores era o que não faltava, a animar aquela paisagem. Que o diga o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que tinha na secretária da Avenida da Liberdade nove requerimentos de pilotos aviadores, a pedirem dispensa de o ser. Aguardavam punição exemplar.
E foi assim, lembro-me como se fosse ontem, que o último bombardeamento aéreo aconteceu ao final da manhã do dia 9 de Maio. Lá fomos em voo rasante até ao objectivo, a encaixar na coluna a pancadaria inclemente da turbulência, seguia eu a asa do coronel comandante, um velho homem excelente, com o rabo mais calejado que um chimpanzé do mato. Do objectivo ergueram-se três cogumelos de fumarada negra. E depois disso não se voltou a ouvir por ali o estrondear dos canhões do império, suponho que se calaram de cansaço. Ou de velhice.
O tempo trouxe, aos poucos, a confirmação do que se vinha cogitando. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? E viu-se claramente que a guerra era acabada, quando começaram a passar ao largo, de gurupés apontado a casa, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Perante tais evidências não havia que duvidar, a guerra era passado.
De forma que alguém começou a pensar no melhor modo de trazer para casa alguns aviões, nem todos eram sucata centenária. Maneira expedita era fazê-lo saltitando, África acima, com a primeira escala na ilha do Sal. Quem dobrara, descendo, tantos bojadores, melhor os dobraria, já subindo. O problema eram as oitocentas milhas sobre o mar, e a garantia de passar por cima delas sem molhar os pés. De modo que se resolveu tirar a coisa a limpo, e fazer o teste definitivo da autonomia dos aviões, com carga máxima de combustível, à máxima altitude utilizável, que eram treze mil e quinhentos metros.
E lá fui eu atrás do coronel comandante, o tal velho homem excelente de quem já se falou. Parecíamos dois sísifos condenados, até chegar aos quarenta mil pés. E por lá andámos a desenhar no ar triângulos minúsculos, a tropeçar em fronteiras, ainda agora esbarrámos no Senegal e já estamos à vertical da linha de Conakri, só o vasto mar dos Bijagós é que nos dava um pouco mais de folga.
Gorou-se, porém, a prova real do exercício. Pois que, a dada altura, sobressaltaram o chefe as estranhas cabriolas que o meu avião se pôs a desenhar. Desabituado de tamanhas alturas, o regulador automático começara a cortar-me o oxigénio da máscara. Como se nada fosse comigo, eu fui perdendo o controle do avião, mais tarde era a visão que já me ia falecendo. E foi o grande saber do velho comandante que o levou a colar-se atrás de mim, a ditar-me procedimentos que eu reproduzia em gestos desconexos, a conduzir-me à entrada da pista que eu já não descortinava, e a mandar-me despejar no asfalto a passarola, que acabou rebocada à mão para o estacionamento.
Tínhamos passado entretanto sobre a ilha Caravela, a norte dos Bijagós, naquele estranho exercício de bilhar às três tabelas. E eu tinha visto, no meio da floresta de coqueiros, uma enorme faixa de macadame, que me pareceu uma pista de aviões. Algum tempo mais tarde, pois que o tempo disponível tinha passado a ser muito, conseguiu-se o acordo dum piloto de helicópteros para um passeio à ilha. Levámos connosco um jovem alferes médico, aterrámos numa praia semeada de bolas de nafta escura, e logo um grupo de negras primitivas apareceu a saudar-nos, entre risadas tímidas. Vestiam tangas de ráfia pré-históricas, que eu só conhecia das gravuras da etnografia ultramarina, e ali mesmo nos deram a admirar os peitos do império, assim abertamente expostos à carícia do sol. Um deles apresentava um nódulo visível, que o jovem médico logo aproveitou para diagnosticar. E a pista enorme lá estava, enigma rectilíneo e vastíssimo, o piso ainda irregular, de macadame não compactado.
Ficou-me sempre vivo este mistério, que ficou por decifrar. Nunca ouvi uma palavra sobre ele. E a minha primeira explicação foi que um governador previdente mandou abrir a pista como garantia de retaguarda. Viessem as tropas a ser empurradas para o mar, às mãos do inimigo ou às dos políticos dementes de Lisboa, e ali achariam refúgio seguro.
Até que tropecei há tempos na chave do enigma, quando vi num jornal um par de onagros bem-falantes, a escoicinhar contra a descolonização criminosa. Se colónias ainda houvesse, compravam eles por bom preço umas divisas de furriel amanuense, para não irem comandar em Madina do Boé uma companhia de atiradores. E pois que colónias já não há, por força as retomarão, para virem depois a descolonizá-las sem crime.
São os pais da Pátria em versão pós-moderna, e já têm na ilha Caravela uma testa-de-ponte. A Pátria, essa, está ansiosa por lhes inscrever o nome na parede do forte do Bom Sucesso, ali ao lado da Torre de Belém. Por ser para quem é, há-de por força arranjar-se um espacinho. Talvez assim, calados os canhões, se venham a calar, também, as bestas.