segunda-feira, 15 de março de 2010

Olhos abertos

Seguindo as boas práticas do melhor poder local, um autarca de Torres Vedras rendeu-se aos sortilégios da criação artística. Contemporânea, que sempre dá mais pica!
E lá espatifou 300 mil euros do precário orçamento no Senhor Vinho, uma subtileza estética de Joana Vasconcelos, que moldou em ferro forjado um garrafão de cinco litros. Com cinco metros de altura, para sobressair na praça e justificar o preço.
É despautério atrás de despautério!
Mutatis mutandis e por mais que doa, o melhor é ouvir o que dizem os mestres.

A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.

Mário Dionísio, Novo Cancioneiro, Poemas, 1941