sábado, 23 de janeiro de 2010

Capítulo 38

[Foto da autora, em Lourenço Marques]
A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos que trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta dum corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava. (...) Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doentes dos olhos por olhar de viés para esses gajos que vêm cá roubar o pouco que é da gente, que a gente cá tem, esses retornados, tão altivos como príncipes que perderam o trono (...). Tão feios, tão pobres de espírito esses portugueses que ficaram, esses portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafão. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mãos. Pequenos.
[Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo]


Na ambiguidade instalada entre ficção e não-ficção, ficamos sem saber de quem é este discurso. Se da menina que chegou a Lisboa em 1975, com treze anos, se da mulher em que ela se tornou e hoje escreve. E sabê-lo não era despiciendo, pois todo o texto é apenas injúria, desbragada e acintosa. Talvez inevitável, mas nem por isso mais justa. Ora se da menina ninguém esperará consciência maior, da mulher é de exigir um pouco mais.
Os mitos da política colonial, levados ao paroxismo, serviram sempre uma elite venal e anti-patriótica. E lograram os portugueses restantes, vitimando-os a todos por igual. Mas o império teve ainda este efeito perverso: dividiu os portugueses entre os que um dia partiram, e os que ficaram por cá. Aos primeiros tocaram as benesses de alguma liberdade, de uma vida mais fácil e desafogada, duma sociedade mais aberta, dum espírito mais cosmopolita, duma cultura diferente, duma natureza mais pródiga e generosa. Aos segundos coube exactamente o inverso.
Durante os treze anos africanos, da menina ou da autora, dez mil portugueses feios, tristes, preguiçosos de merda, morreram lá para que ela lá vivesse, e agora só existem na parede do Forte do Bom Sucesso, ali à Praia das Lágrimas. Mais trinta mil, que para lá foram inteiros, retornaram também, reduzidos a metade. E algumas dezenas de milhar ainda hoje esbracejam contra os fantasmas que de lá trouxeram. Dos restantes que por cá ficaram, dos que nunca fizeram a ponta dum corno pela vida e não sabiam o que eram os pretos, um milhão e meio tinham fugido a salto, a ver se matavam a fome na Europa. Os outros estavam aqui, quando ela cá chegou. E deram quanto tinham, que era nada, a todos os que voltaram. Houve mesmo um tal Paulo Chipilica integrado por vários anos em ministérios de Lisboa. Mais tarde havia de ser o ministro da educação da Unita, outro mito dos portugueses de Angola.
No tempo em que um infante megalómano mandou o Gama a descobrir a Índia, e a fundar um império aos portugueses, os suíços eram bonecos de neve, na encosta duma montanha. Os finlandeses vestiam peles de urso. Os danões viviam em cavernas. Não por acaso, só os castelhanos já eram os duques de alba que hoje são.
Onde vai hoje essa gente, e onde nos ficámos nós? A fazer filhos às pretas debaixo dum embondeiro, para engrandecer Portugal! Porque as pretas tinham a cona larga, como nos explica a autora. E não tinham poder para reclamar paternidade. Ninguém lhes daria crédito.
No seu Caderno, Isabela Figueiredo deitou fora a máscara dos tartufos, e dos alienados que sem surpresa a injuriam e lhe mordem nas canelas. Já não é feito pequeno. Mas aflorou apenas a espuma do naufrágio. O do império e o nosso, que foi o mesmo.