quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Se Maomé não vai à montanha...

Nunca escrevi uma linha para o mercado, por múltiplas razões. À primeira, porque não dependo dele, nem aspiro à carreira de literato. Creio mesmo, firmemente, que só se justifica editar um trabalho, se ele apresentar qualquer coisa inovadora. Tudo o resto não passa de ruído, de repetição inútil do já visto.
À segunda, porque digo o que tenho a dizer, do modo que eu entendo. E não aquilo que ao mercado apraz. Os requisitos da literatura e as leis do mercado e do lucro raramente são compatíveis. Só quando a qualidade do objecto é de tal modo elevada, que submete o mercado e se impõe por si própria. E é rara, uma coisa dessas. Aconteceu, por exemplo, na década de 80, com os primeiros romances de Saramago.
À terceira, porque confundir objectos literários com produtos de consumo é uma insanável contradição. O editor já foi em tempos uma marca de água, uma garantia de qualidade. Hoje deixou de o ser, para mal da literatura. O moderno editor de sucesso é o que responde aos gostos do mercado, imolando a qualidade em benefício das vendas. Esta lei geral do mundo em que vivemos tem efeitos fatais, assim aplicada à arte.

Aqui há uns dois anos dei As Aves à estampa, numa editora entretanto falida. Ao editá-las, fiz o que tinha a fazer. E não tenho a mais leve ideia da recepção que tiveram. Dos publicistas, dos críticos, dos divulgadores que nos ensinam a pensar, não me consta que tenham merecido uma linha sequer. Ora para dizer que sim, ora afirmando o contrário. Porém alguns ecos me chegaram. Guardei três, que me são suficientes.
O primeiro é de um leitor comum, sem obrigações de campo: Este teu livro é muito melhor do que tu! Sendo ele verdade ou não, nada se pode alegar.
O segundo vem de alguém com obra vasta, e não se ouve sem orgulho: V. escreveu o melhor texto de prosa portuguesa que me foi dado ler em anos. Nele encontrei tudo: ritmo, música, vernaculidade, suspense, mistério, escuridões, desesperos, enfim... aquilo por que o leitor espera quando abre um livro.
O terceiro é surpreendente. Porque diz coisas em que eu não tinha pensado, vindas dum leitor com pouco mais de vinte anos: Confesso que, perante o romance, estou siderado, rendido. Os traços essenciais que encontrei na tua obra confirmam-se plenamente aqui, mas agora de uma forma mais sublimada, mais madura, mais certa de si. A influência e a apropriação criativa do Saramago são extremamente fortes, marcantes, estruturantes. O que para mim resulta melhor nesse processo é que tu não pegas numa forma pronta e acabada que aplicas mecanicamente ao objecto que tratas. Não. Deixas que a lógica específica do tema sobre que te debruças determine as influências que vivem intensamente em ti (as do Saramago), situação que humaniza as personagens, os seus caracteres e as suas acções.
A influência do Saramago levada a este nível é coisa nunca vista. É relativamente vulgar encontrar uma linguagem faulkneriana: Rulfo e Vargas Llosa, nas Américas, Lobo Antunes e Marsé, na Europa. Uma sub-linguagem pode também ser encontrada, por exemplo, a partir do Lobo Antunes: Peixotos, Guedes de Carvalhos, etc, (qualquer português aspirante a escriba, em geral). Percebe-se: é uma escrita muito emotiva, cujas poética e musicalidade são particularmente belas e viciantes. Mas enquanto o Lobo Antunes, por exemplo, não imita o Faulkner - já que não autonomiza a forma para adaptá-la à realidade portuguesa, mas antes trabalha a realidade espacio-temporal portuguesa através da influência de Faulkner - os Peixotos e os Carvalhos caem no exerciciozinho de estilo vazio, ou seja, imitam a forma, marimbam-se para o tempo e espaço, para essa chatice da determinação histórica de uma situação.
Em relação ao Saramago, não se encontra tal linhagem de seguidores. Porque a escrita não é de adesão tão imediata, é mais mediatizada, mais original, porque o narrador apresenta um estatuto complexíssimo: conta-nos a história, conduz-nos, literalmente, aos espaços físicos e psicológicos, anuncia os procedimentos formais e estilísticos a que vai recorrer, varia as escalas e os pontos de vista, por vezes desaparece e não anuncia, por vezes desaparece e anuncia, etc, etc, etc. É uma escrita que exerce as sua influência, portanto, ainda mais do que na linguagem faulkneriana, através desta originalidade e genialidade formal.
O perigo, por conseguinte, para o seu seguidor é precisamente o de cair nesta apropriação meramente estilística, oca, formal. E talvez devido a essa dificuldade não haja verdadeiros seguidores de Saramago. Até hoje. Até a "As Aves Levantam contra o Vento". A apropriação é verdadeira, é profunda, é filtrada e trabalhada pela densidade e espessura da tua personalidade - a apropriação é revolucionária. (...)
Gosto também bastante dos flash-backs que utilizas não tanto como procedimento metodológico de construção narrativa e dramática, mas mais como, digamos, idiossincrasia, visão e sentimento do mundo. Trata-se de uma eclosão triunfante do passado no campo do presente, de uma afecção da história geral e individual pelo passado. Em ti, é uma ligação orgânica, a de passado e presente, muito estreita e forte. Orgânica, no plano mais abstracto da inter-relação das duas categorias. E orgânica no plano da inter-relação entre história geral e história individual. (...)
O tema do romance penso que é inédito na ficção portuguesa. Um militar que se exila na sequência do 25 de Novembro é coisa que, no mundo publicístico português, existe apenas como relato documental. Mas, também aqui, para ti, é um 25 de Novembro que tem história, que não se esgota em si, que tem passado (de séculos) e que tem consequências futuras. Acaba, por isso, por ser uma reflexão sobre a modernidade portuguesa, em geral, tendo como pressuposto inicial o 25 de Novembro. (...)
[Declaração de interesses: considero, de facto, que a primeira meia dúzia de romances de Saramago, de Levantado do Chão ao Ensaio sobre a Cegueira, são de génio. Depois vieram concessões ao mercado, quem sabe se inevitáveis. Mas tudo na vida tem um fim, e a criatividade também.]