terça-feira, 14 de abril de 2009

Portugalmente (35)

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Põe-se o viajante a ruminar no que eram estas vidas, lá tem os seus motivos. Mas o senhor Primo já lá vai adiante, todo a querer explicar o que sabe dos jazigos. Este ainda está vazio, que foi feito para nobrezas recentes. O dono criou-se aí, há uns anos atrás, era filho dum tendeiro que levava na carroça uma tenda aos mercados. Uns panos, uns alguidares plásticos que eram novidade, uns espelhos, uns quadros de santinhas, hoje ninguém imagina o que isso era.
Quando se achou espigadote, e a fugir à miséria, o rapaz foi-se à França. Mas não se consumiu muito por lá, correu-lhe bem a vida, ninguém sabe os comos e os porquês. Sabe-se apenas que um dia voltou e foi estabelecer-se numa terra qualquer, à beira-mar. Ainda vieram aí uns franceses, uns antigos patrões à procura de inculcas, boquejou-se que andavam à cata dele. Por muito ir à missa não seria, diz o Primo, a sorrir.
Ora o viajante já ouviu muita coisa, da emigração em França. Havia menino que fazia negócio dos patrícios, encalhados às dúzias ali em Champigny, na maior das misérias. Sem tecto, sem dinheiro, sem conhecer a língua, dispunham-se a esportular o que não tinham, só para arranjarem trabalho. Outros vinham a Portugal e faziam-se correios, traziam dinheiro em mão para as famílias dos colegas. Quase sempre eram roubados no caminho, o dinheiro raramente aparecia.
Fosse ele como fosse o rapaz era esperto, e passados uns anos tudo eram riquezas. Ele era a construção, era um estendal de máquinas num negócio de areias, eram técnicos a montar estufas de pepinos, a tratar dos cavalos para o volteio dos turistas. Foi então que começou a comprar terras cá na aldeia. E boas casas, de antiga gente, que aparecessem à venda. Montou aqui o jazigo, que tudo isto são placas já feitas, e criou um lar de São Sebastião, desses dos velhos. Nunca ninguém o viu, nem sabe aonde fica, mas serve para certos jogos da contabilidade. Isto é o que se vai ouvindo, que ao certo ninguém o sabe, arrisca o senhor Primo.
Com tamanho andamento, o povo acreditou que estava ali um benfeitor. Um dia montou no jardim uma tenda de feira, e ofereceu um festim, a festejar os anos. Veio aí ao beija-mão o presidente da câmara, e a vereação inteira, e os chefes das freguesias que mandou convidar, nunca mais acabavam os discursos. Depois houve à tarde corridas de cavalos daqui até à vila, pareciam voltados os tempos da fidalguia, os funcionários da câmara andaram numa fona uma semana inteira, a marcar o circuito pelos montes, com fitinhas às cores. Na vila andava ao dispor uma charrete, tocada por cavalos. Corredoura acima, corredoura abaixo, era só fazer sinal ao postilhão e embarcar, aquilo é que eram tempos...
Sabia-se que havia ali negócio, e mau não seria ele, que assim dava para tanto. Mas a certa altura parece que viraram os ventos. Foi dito que a polícia andava alerta e o homem desapareceu por uns tempos. Um dia amanheceu incendiada a casa dos Casais. E quando o tribunal mandou arrestar tudo, por causa duns calotes, foram dinamitadas as paredes. E tais são as pedras de armas que aqui se hão-de abrigar, quando chegar o destino.
Lá em baixo, num cabeço à margem da represa, reconhece o viajante um cramoiço de pedras. Já foram casa onde gente morou, já prometeram ser um lar de velhos, agora são as ruínas deste sucesso moderno, perdidas na paisagem. O viajante fica a olhar o jazigo vazio, e o azul do horizonte no espelho das portadas. Razão tinha quem disse que esta vida é uma feira, cada um vende nela o que tem para vender.
E tanta foi a conversa que o viajante não passará daqui, a noite está a chegar. O sol lá foi descendo para as costas da Cabeça do Lagar, e as sombras do monte já vão à ribeira. O senhor Primo conhece os caminhos todos que se avistam daqui a descer a encosta, e lembra-os ao viajante. É o Caminho-mau e o do Rosmaninho, o dos Vales e o da Ponte Velha e o da Tapada Grande. Antigamente andavam num badanal nesta altura do ano, a caminho das tapadas. Hoje não levam a sítio nenhum, antes parece que vão a afogar-se todos, quando entram na água. O senhor Primo lembra as vidas antigas, as labutas dos campos, as figuras da gente que as movia. Vê-se que tem saudades de quando o vale inteiro era uma azáfama, e o ar andava cheio do cantar de guizos e chocalhos, em lugar deste silêncio. Descontando, claro, a fome que passou. E o viajante, que já não tem pressa, fica sentado a ouvi-lo. Ao menos uma vez voltaram à vida estes caminhos todos.
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