quarta-feira, 22 de abril de 2009

Portugalmente (37)

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Já segue rua fora o viajante, ali em frente está o adro da igreja. E estas casas modernas, mais enfunadas do que a barca de Noé, nascidas onde havia construções antigas não ficarão na história. Afora esta, à direita, mesmo à face a rua. Se fosse distraído o viajante, e confiasse em projectistas, por certo ficava sem cabeça. Porque esta casa ostenta um varandim de sacada, a entrar pela rua dentro, à altura dum pescoço. O desconchavo não podia ser maior. O que há-de valer aqui é não haver hoje em dia a tonteira dos bêbados a cambalear na rua, como antigamente. E terem-se acabado os burros, que hão-de ser agora todos projectistas, ou vereadores do urbanismo.
O adro da igreja é vasto e arejado, e este largo bem podia ser o centro do mundo, decerto já o foi para muita gente. Rodeia uma igreja setecentista, de ampla fábrica e altivo campanário, uma alentada torre de quatro ventanas e um relógio de pesos, fabricado em Almada. A fugir ao calor que começa a apertar, o viajante empurra as portas de almofada, de bom castanho antigo. Passado o guarda-vento, acha-se num refrigério de penumbra. Logo ao lado encontra o baptistério, com uma pia de granito onde qualquer neófito cabe de corpo inteiro. Mas está cerrada a porta gradeada, coberta de ferrugem, talvez do nenhum uso.
Ao fundo, no altar-mor, avulta o esplendor dum S. Martinho orago, de báculo e mitra. Cobre-o por inteiro um caprichado manto, decerto vindo do céu, assim tão novo. Mal havia de parecer o santo a presidir com singela meia-capa, no meio das talhas reluzentes, depois de repartir com o pobre o agasalho que tinha. Nos altares laterais anda atarefada uma devota, entre limpezas e enfeites. É ela que se encarrega dos ofícios de leigos, que ao velho padre já falece o coração, e outro novo não vem, que os não há. Mas não sabe decifrar ao viajante a inscrição que ali está numa pedra, onde a custo se confirma a era de 1712.
Encostado à parede, sobre umas andas de madeira, está um Senhor da Paixão em tamanho natural, a arrastar uma cruz. A cor soturna do manto e o vulto maltratado da figura destoam na placidez da nave. Mas não parecem assustar a devota, a explicar ao viajante que se trata de aquisição moderna, encomendada em Braga há meia dúzia de anos, pela vaidade de dois mordomos que assim quiseram apresentar serviço. O viajante pensa com os seus botões que mais valera terem ficado quietos, os mordomos. Porém, vaidades fora, tudo hão-de ser formas de vida, fazer santos e usá-los. E após uma mirada ao amplo coro, por cima da entrada, sai o viajante por uma porta lateral.
Cá fora, em volta da praça, a desmesura tosca das construções modernas corrompeu o antigo conjunto. Mas o pior foi feito no sagrado, a envolver a igreja, onde já foi em tempos o cemitério antigo. Cobriram-no a paralelos. E quando chega o verão e vêm os emigrantes, põem-lhe automóveis em cima, à sombra do campanário. Isto explica a devota, que já está de partida e põe um ar furibundo, como quem ameaça uma cruzada. Tem ela muita razão, concilia o viajante, embora com diversos argumentos.
O adro empedrado e deserto faz lembrar um tabuleiro de xadrez a estorricar ao sol, com as suas linhas às cores. E a este viajante, que não vinha a contar com maravilhas inefáveis, já lhe bastava encontrar algum respeito pela ordem simples do mundo, a natural harmonia do sol, das águas e da terra: duas plantas a crescer, um triângulo com flores, um regador na mão de horas em quando. Mas isso desapareceu.
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