Isso mesmo é o que acontece a Portugal, tolhido em solidão, orgulhosamente só. O mundo riscara-nos do mapa, agências difundiam a espaços mais uma condenação da Onu, abstenção da América por causa dos Açores, votos contrários das falanges de Madrid, dum Brasil comprometido às vezes, dos africânderes do Cabo, se a isso eram chamados. E de repente a revolução soltou rumores na imprensa inteira, não há dia em que não se fale de nós por esse mundo, este jornal católico francês adverte que o pequeno Portugal se arrisca a ter de pagar, por muito tempo, a política anacrónica dos antigos dirigentes, olha a novidade, e estoutro, comunista, lembra que o inventário dos longos anos da ditadura é catastrófico, a quem o dizem eles. Perante a incerteza das tendências, um trabalhista escandinavo sustenta, liminar, no estado terminal em que o país se achava, qualquer leve mudança só pode ser para melhor.
Por não ter sabido a tempo de tão fausta novidade, suicidou-se em casa, no Porto, o carcereiro da Pide, logo esse que tanta história nos podia contar. E, por causa das persistentes dúvidas, arrisca João Padeiro um anúncio no jornal, a proclamar que nunca foi denunciante nem informador. Quem dúvidas não tem, nem padece de hesitações, são estes pescadores da Afurada, a julgar pelo arrebato com que arreiam no largo um busto de almirante, a mando de quem vão traineiras e marés e gentes da pesca em geral. Atam-lhe uma bóia ao pescoço e lançam-no ao rio, é uma geral risota, lá vai o manipanso a caminho da foz, a simples cabeça escura espadanando à flor da rebentação, vai-se travar aqui a última batalha contra o mar tenebroso. Aproveitemos nós para tirar a limpo a remota questão, quem foi que sujeitou Marte, a quem irá Neptuno obedecer.
Vai um frenesi por esta terra, pela pressa se vê que chegamos atrasados à história, só partidos políticos são já cinquenta. Toda a gente quer um sindicato, são os artistas plásticos, os cartonageiros, os administrativos do ensino, a construção civil, os ferroviários, os funcionários públicos, os magistrados, os serviços sociais, a marinha mercante e os cerâmicos,os estivadores e os hoteleiros, as prostitutas e os enfermeiros do Porto, os pescadores do arrasto, os médicos e os mármores e os motoristas, os metalúrgicos de Setúbal, os jardineiros e os farmacêuticos, os caixeiros, os profissionais de informática, e aqui só os padres estariam em falta, se há muito não estivessem já servidos.
A vida deste povo é um antiquíssimo estendal de queixas, Lisboa não tem pão nem transportes, os correios estão paralisados, é um corropio de saneamentos nas universidades, nas autarquias, nos hospitais, nas administrações, já avisam os comunistas que a impaciência gera amargos de boca, fala quem muito teve que aprender, são cinquenta anos de guerra contra uma armadura de ferro. Mas bem prega frei Tomás, que já nesta empresa são ocupadas as instalações, em face da traição reformista é necessária uma aliança revolucionária em que a classe operária se organize autonomamente formando os seus comités políticos e os seus sovietes, onde terão eles ouvido a lenga-lenga, já em Direito se está marchando em frente pelo controle estudantil da escola capitalista, já os meninos do Pedro Nunes entraram em greve até à abolição dos exames, já na Renascença avançámos para a autogestão contra a padralhada reaccionária, já em Letras se exige a passagem administrativa em todas as cadeiras, lá vamos, cantando e rindo.
No porto de Lourenço Marques três mil estivadores entram em greve, está paralisado o caminho de ferro de Benguela, grevistas são treze mil, aumentam os ataques aos quartéis na Guiné, Buruntuma é desactivada, afinal nem tudo vai melhor com Coca-Cola Grande, por isso a guarnição de Jamberem deixa para trás o posto fronteiriço e vai asilar no quartel de Cacine. O império africano é um caldeirão fervente, é um grito do Ipiranga há muito sufocado, e que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões, se é da liberdade que estamos a falar, nem mais um soldado para as colónias. Os comunistas advertem que o povo deve repelir os demagogos e aventureiros da esquerda, trezentos mil exemplares do Eça logo se esgotaram em Moscovo e um grupo do teatro Bolschoi vem a Lisboa, mas Sakharov protesta com uma greve da fome, mas Rostropovich está exilado em Londres, mas Barischnikov deserta no Canadá, esta bailarina do Kirov é impedida de se juntar ao marido que está na América, e um general de olho de vidro está clamando que o povo não deve deixar-se iludir por novos ditadores. (Cont.)