quarta-feira, 11 de junho de 2025

As Aves 6-8

Técnicos soviéticos trabalham num veículo capaz de rodar a mil e duzentos quilómetros por hora, não descansam enquanto não vencerem o recorde americano de velocidade em terra, e assim já não terão demora no caminho as mães da Rússia que viajam entre a praça Pushkin e o mausoléu de Lenine. A ilha de São Tomé festeja o levantamento de Fevereiro de cinquenta e três, o tal que terminou com centenas de negros mortos, no cais do Pidjiguiti foi em cinquenta e nove. Trinta mil camponeses sem trabalho ocupam terras incultas da Casa do Cadaval, e do latifúndio de Alcácer, e da herdade da Chaminé. Os comunistas são expulsos das ilhas do Atlântico, ao pontapé, à bomba, que estes são domínios predilectos da América e a América não dorme. Uma estátua de bronze apareceu esta manhã decapitada e Santa Comba Dão, e cinquenta polícias, que estavam barricados nesta esquadra de Setúbal, são evacuados para Lisboa em carros de assalto. O general do olho de vidro busca refúgio em Talavera la Real, depois do ataque aéreo a um quartel de Lisboa.

Devido à situação difícil em que se encontra o jardim zoológico, os ursos atingiram um estado de magreza considerado anormal. Há ainda três milhões de analfabetos, de homens aqui falamos, não dos ursos, se a uns e outros alguma coisa valerá a esforçada pertinácia das brigadas da juventude em Chaves. No Porto, entre estudantes, estão hoje Beauvoir, e Sartre, e Foucault, e esta foi a assembleia mais muda, se não a mais ignorante, que alguma vez encontrei. A morte do homem e a ideologia capitalista são o tema da noite, as ocupações e a autogestão as soluções para o mundo, e as eleições que aí estão uma ratoeira para idiotas.

Os últimos americanos fogem da hecatombe de Saigão, e os camponeses de Alcoentre ocupam o maior latifúndio a norte do Tejo, não sem razão lhe chamam Torrebela. É um condado de oito mil hectares, jóia primeira da casa de Lafões, que de outras dispõe na Azambuja, na Golegã, em Angola e na ilha de São Tomé, nem todos afinal se queixarão do tal funesto império. Só este paço é um labirinto, que entre salões e quartos privados contamos nós cinquenta, é nosso quanto desta janela a vista alcança, o próprio horizonte nos pertence, vedado em redor por aquela muralha da China.

A Torrebela senhoriou durante séculos duas freguesias que lhe cabem lá dentro, em vida do senhor duque dava pão em troca de suor, ressalvados os dias do ano, frequentes de ver, em que um homem se via rejeitado pelo capataz na praça da jorna. Só bois de trabalho eram cinquenta juntas, veja a força que ali estava, sem contar agora os gados miúdos que amalhavam em estábulos e currais. Por estas máquinas a desfazer-se em ferrugem, por estas forquilhas, e charruas, e malhos, e ancinhos, e serrões, e apeiros, e cagas a apodrecer por aí em telheiros e arribanas, por estes petrechos e armamentos de abegão e maioral, por aí se pode ver a riqueza que isto não era. A ruína e a fome vieram depois que o velho duque faleceu. Desavindos os herdeiros, deixou de haver amanho das culturas, é tudo por aí uma praga de eucaliptos, no lugar dos gados só se topam gazelas, e corças, e veados, a pastar por onde calha. De forma que fizemos uma reunião e mandámos vir as Forças Armadas, esteve cá um capitão e outros da cavalaria, onde nos disseram que ninguém pode ficar à espera que saia a lei para ocupar as terras. Primeiro ocupa-se a terra, a lei virá um dia, na revolução é assim.

Mas é penosa, esta revolução.Que o digam as velhas camponesas de Maçussa, mal entram nos aposentos da duquesa e logo as rudes vozes se tornam balbucio, parece que violaram o santo dos santos e rasgaram o véu que preservava Deus. Têm nos olhos uma estranha culpa, será isto o pecado original, e os quebrantados membros a custo sujeitam baús e gavetões. Penduram ao peito vestes a atavios, miram-se no cristal do espelho, é isto um baile de mascarados a jogar ao sisudo, riem só quando um maltês vem da capela, de batina e sobrepeliz, a distribuir à mão absolvições gerais. Mas já entrou um maioral zabgado que expulsa toda a gente, o baile terminou.

A proa do império afunda-se no mar como um Titanic, Angola está a ferro e fogo, há guerras e mortandades por todo o território. Estes são os tempos terminais, já anda à solta a besta monstruosa, brancos e negros largam terras e haveres, empilham-se aos milhares nos cais, a ver se escapam aos fogos cruzados, aos ódios, às traições. Se não há porto de embarque fogem num desvario, para o sertão, para o nada, assim visto de cima parece aquilo uma serpente de lata a arrastar-se na areia e são afinal cinquenta quilómetros de jipes, furgonetas, camiões, limusinas, caravanas, tractores e catrapilas carregados de gente, carregados de mobílias coxas, carregados de sobas de pau preto e edredões de gazelas, e esta é a picada que nos há-de levar à fronteira das terras do fimdo mundo. Somos dez mil e havemos de chegar. Virão dilúvios de água e tórridos calores, os pés hão-de lavrar nos lamaçais dos rios, morder-nos-ão no rosto as madrugadas álgidas e havemos de chegar, porque nenhuma história fica suspensa a meio, ninguém pode torcer as leis do mundo. Quem saiu entrará, regressará um dia tudo quanto partiu. (Cont.)