Traz-me à lembrança uma história de há uns anos.
Dia 3
«O maurício picapau foi tipógrafo
durante um ror de anos. Fartou-se de esquadriar linguados no linótipo, já via
tudo mais pardo que o chumbo dos caracteres. Costumava passar todos os dias no
jardim de são lázaro, abria os olhos para o céu alto e deleitava-se com a
majestade das copas das tílias. Pareciam mesmo árvores da pomerânia.
De há uns tempos para cá, começou
a andar de cabeça baixa e ar consumido. Os computadores entraram na gráfica
ideal e desataram a fazer o trabalho com uma prontidão nunca vista. Primeiro o
maurício ficou regalado, depois ficou perplexo, e finalmente aflito. Mas o pior
sucedeu no dia em que o patrão falou da flexibilização do trabalho pela
primeira vez. O rapaz levou o lenço tabaqueiro aos olhos, talvez para estancar
uma emoção inoportuna, e deu conta de que estava a crescer-lhe um bico na ponta
do nariz.
A situação agravou-se com o tempo,
à medida que o patrão entrou a falar de globalização, de deslocalização e de
coisas assim. O bico do nariz cresceu-lhe descontroladamente, e o velho
tipógrafo acabou mesmo despedido, por clara inadequação para o serviço.
Depois disso, o picapau continuou
a fazer todos os dias o trajecto de sempre, mas nunca mais foi além do jardim
de são lázaro. Mirava de longe os velhos reformados que lhe estranhavam a
fisionomia, às vezes subia o olhar pela majestade das tílias e pensava na
família, pensava na ordem de despejo por falha da renda, pensava numa solução
para a vida. Até que um dia deixou avançar a tarde, marinhou pela tília mais
alta, e passou a noite a escavar uma toca numa forquilha aconchegada.
Na manhã seguinte mudou-se para lá com a mulher. A
entrada é acanhada, de tão redonda, e o nariz é complicado de arrumar lá
dentro. Mas há males que vêm por bem, com este inverno de chuva que anda por
aí.»[O mensário do Corvo, Jorge Carvalheira, Ed. Quasi, 2002]