quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O carroção

Dez da manhã e o carroção buzina, rua fora, enquanto não chega ao adro. Depois pára no meio do empedrado e abre as portas de trás. O episódio não é surpreendente, nem altera a rotina de ninguém. A imperfeita centena de moradores precários, os mais deles idosos e dependentes, todos frágeis e achacados, não tem pressa de se mostrar na rua. Ouve estas buzinas estridentes e continua na cama, ou à lareira, à espera que a manhã suba.
Um dia é o carro da fruta que traz as mercearias, o do peixe congelado, o talho que vem da Póvoa, um tal que vende calçado, os padeiros que são seis e vem um todos os dias... Mas este de hoje é maior, e traz lá dentro uma loja sortida de pronto-a-vestir: blusas de flores a pender de cabides, saias enegrecidas de poeira, chambres sintéticos de forma hesitante, pares de jeans de marca desconhecida e joelheiras surradas, lingeries fugidias e precárias, dois kispos acolchoados que são falsos, peúgas de fibra num cubo de cartão.
O tendeiro é pouco assíduo, é muito raro aparecer. Usa bigodes, tem um estranho semblante, põe a fugir da cabine uns requebros de flamengo. Espera dez minutos a chupar um cigarro e vai-se embora. Esteve hoje aqui conforme há-de fazer os mercados semanais das redondezas, os de perto e os de longe, debaixo duma tenda presa a uns ferros. Nunca faz negócio que se veja porque lhe faltam clientes, e os artigos que transporta vieram de muito longe, um contentor cheio deles, dumas fábricas do outro lado do mundo onde operários escravos trabalham, comem e dormem, para abastecer os mercados. 
Eu não sei como o tendeiro (ele e os mais) paga os óleos e os pneus, e o seguro, e o selo do carroção, e lhe mete o combustível, e não pára. Olho em volta e não sei o que fazer, num mar de precariedade, com tanto mercado à solta. Que artes, que malas-artes nos salvarão a todos? Se o Estado abandonar as funções sociais que lhe competem, como defendem uns espantalhos que aí têm andado, três milhóes de portugueses resvalam para a miséria. Foi isto que nós herdámos, de séculos duma história desgraçada. 
Tomo um café num balcão e avanço para a caminhada. É um bom começo e a bela manhã convida.