Só era boa, a morseta, quando estávamos em fase do voo por instrumentos. Que isso de limitar o mundo ao cockpit, enfiar uma pala na viseira e passar a missão toda sem ver nada lá para fora, era uma contradição recusada pela matéria terrena.
Folgávamos quais noviços, numa manhã de morseta, quando a serra de Sintra aparecia coberta. Não haveria missões. Ele havia aulas teóricas, sabatinas de emergências, essas tinham que andar sempre na ponta da língua. Mas tudo era preferível ao voo por instrumentos, à descolagem às cegas, ao cálculo de rumos das penetrações dirigidas por ponteiros.
Porém a pior de todas fui encontrá-la em Luanda, dois anos depois. Vinha do norte, não sei já com que missão, e trazia um acompanhante no lugar traseiro dum T6 velhinho, que nos viera ofertado pelos sul-africanos. À vertical de Luanda, a morseta chegava aos oito mil pés. E até chegar ao tecto de quinhentos pés que a torre prometia lá em baixo, era uma sopa leitosa, indecifrável, quem sabe o que andaria lá por dentro.
À falta de melhor, tinha que ser. Verifiquei a sintonia do rádio-farol, acertei o altímetro e o horizonte que tinha uns giroscópios da pedra lascada, ajustei o regime a uma prudente razão de descida e mergulhei na sopa. O velho bombardeiro não fora feito para aquilo. Mas pior que eu estaria lá atrás o companheiro, entregue a mãos alheias naquele desconhecido, sei lá o que por lá ia.
Iniciámos a curva quando os giroscópios perderam o tino. E ficámos reduzidos ao equilíbrio dos fluidos, às sensações do corpo físico, e aos cuidados dum voo que lhes calasse os gritos e os protestos.
O tecto dado pela torre era correcto, e quando voltámos a ver mundo o peito descomprimiu. Só me escapara a redução progressiva do motor, à medida da descida, e aparecemos cá em baixo a uns vertiginosos 180 nós. Para nós, aquilo era muito. Num dinossauro daqueles, era a barreira do som.