Era uns anitos mais velho e tinha mãos criativas. E sabia fazer coisas fascinantes. Lembro-me dele, numa tarde debaixo do telheiro, a fazer um papagaio de papel: uma estrela de canas de flauta presa por atilhos de cordel, folhas d'O Século coladas com farinha, um rabo comprido urdido de papelotes, e uma guita, grosseira e compridona, que ele fazia dos canudos dos foguetes e enrolava num pau. Quando aquilo estava pronto grimpávamos às fragas. E era uma alegria ver o papagaio a subir ao sol, levado pela aragem.
Muitos anos depois, dedicou-se a refazer carros antigos, motores muito cansados, frisos que não existiam. Saíam-lhe das mãos como se fossem novos. Até que também ele ficou velho, ficou adoentado, apanhou uma pneumonia e foi-se embora.
Os velórios na igreja são aqui obrigatórios, e os funerais ainda mais, porque não há desobrigas da precária humana condição. O destino ainda comanda, neste céu que já foi de papagaios. E ao vê-lo irreconhecível, inerte e descolorido, coberto de rendas brancas e rodeado de flores, eu respeito os rituais. Mas quando partir um dia, não quero atravessar o rio pela mão do barqueiro mítico. Quero cruzá-lo sozinho, a ouvir a noite inteira as ondulações de Bach. Enquanto regresso ao cálcio, ao nitrogénio, ao carbono original.