Paro uns minutos ao sol do alto de Santa Cruz para fumar um cigarro. E enquanto lavo os olhos nas encostas da Vela que levam ao rio Zêzere, chegam-me as lembranças duma jornada antiga, quando as desci pela primeira vez.
Eram as férias. E um jesuíta, que me deu a conhecer o Cícero, adquirira uma velha arrastadeira e quis passear nela a família. E porque eu tinha sido seu atento aluno, e conversava em bom latim com ele ao longo dos corredores nos intervalos das aulas, convidou-me a integrar a comitiva.
Para mim foi uma alegria, que acabou em bem. Fazia as descidas sempre em ponto morto, na esperança de ganhar alguma coisa e só perdia. Seria um bom latinista, mas ao volante falava latim bárbaro, vim a sabê-lo depois.
Fizemos um piquenique na margem duma ribeira, a dois passos de Nisa, ao lado duma ponte entre macelas floridas. E passei pela primeira vez no Rossio ao Sul do Tejo, onde tivemos um furo a atravessar a linha dum comboio. Fomos a Fátima, de que mal me lembro, que pecados trago nesta consciência. Lembro-me do Porto, onde pernoitámos todos, nunca depois soube aonde. Subimos por certo a Braga, que já era a idolátrica sem meu conhecimento. E sei só que no regresso, era de noite na estrada, adormeceu por momentos o nosso São Cristóvão. Nós livrámo-nos de boa, mas a tout-avant era uma boa estradeira.
Teremos voltado a casa, se a história assim o atesta. Porque a memória mais grata, enquanto desço para a Vela, é dumas pautas de Bach que aprendi a dedilhar numa organeta de foles, quando me foi permitido passar os intervalos a pedalar nela.
Nascemos com oceanos à espera que os naveguemos. Mas ainda hoje tem um preço, nascer atrás do sol-posto. Nesse tempo era pior e eu rejubilo.
[Mal sei que me espera ainda hoje (a propósito dum lutador distrital republicano, um precursor que seguia Afonso Costa), a palestra dum historiador confuso. Dos que não distinguem povos das elites dirigentes deles. Dos que confundem interesses dos barões das fundições do aço e do alumínio com os ideais humanistas da Revolução Francesa, nesse tempo há muito sepultada no bonapartismo.]