terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O senhor Escarlate

Era este!
«... Baltasar, não te saberei explicar, mas sinto que a pessoa que trago é de grande confiança, por ela poria as mãos no fogo ou deixaria a alma como penhor, É mulher, É homem, italiano de nação, está há poucos meses na corte, e é músico, mestre de cravo da infanta, mestre da capela real, o nome dele é Domenico Scarlatti, Escarlate, Não é bem assim que se diz, mas a diferença é tão pouca que podes chamar-lhe Escarlate, afinal é como toda a gente lhe chama...»

«... só o cravo desapareceu, que foi que aconteceu ao cravo, nós o sabemos e vamos dizer, que indo Domenico Scarlatti à quinta, viu, já chegando perto, levantar-se de repente a máquina, num grande sopro de asas, que faria  se elas batessem, e tendo entrado deu com os destroços da largada, as telhas partidas, espalhadas pelo chão, as ripas e os barrotes cortados ou arrancados, não há nada mais triste que uma ausência, corre um avião pista fora, levanta-se ao ar, só fica uma pungente melancolia, esta que faz sentar-se Domenico Scarlatti ao cravo e tocar um pouco, quase nada, apenas passando os dedos pelas teclas como se estivessem aflorando um rosto quando já as palavras foram ditas ou são de menos, e depois, porque muito bem sabe ser perigoso deixar ali o cravo, arrasta-o para fora, sobre o chão irregular, aos solavancos, gemem desencontradas as cordas, agora sim se desacertarão os saltarelos e vai ser para nunca mais, levou Scarlatti o cravo até ao bocal do poço, felizmente que é baixo, e levantando-o em peso, muito lhe custa, o precipita a fundo, bate a caixa duas vezes na parede interior, todas as cordas gritam, e enfim cai na água, ninguém sabe o destino para que está guardado, cravo que tão bem tocava, agora descendo, gorgolejando como um afogado, até assentar no lodo. (...)»
[Memorial do Convento, José Saramago, Ed.Caminho, Lx]