«(...) As mulheres abrem devagar uma caixa, tiram de dentro qualquer coisa envolvida numa toalha branca, e todas juntas, cada qual fazendo seu movimento, como se estivessem executando um ritual, desdobram, e é como se não acabassem de desdobrar, a grande peça de veludo carmesim bordada a ouro, a prata e a seda, com o largo motivo central, opulenta cercadura que rodeia a custódia erguida por dois anjos, e ao redor flores, fios entrelaçados, esferazinhas de estanho, um esplendor que nenhumas palavras podem descrever. O viajante fica assombrado. Quer ver melhor, põe as mãos na macieza incomparável do veludo, e numa cartela bordada lê uma palavra e uma data: "Cidadelhe, 1707". Este é, em verdade, o tesouro que as mulheres de preto ciosamente guardam e defendem, quando já lhes custa guardar e defender a vida. (...)»***
Ao chegar ao cimo da escarpa que sobe do Côa fiquei-me a respirar fundo, os punhos ainda cerrados. Chegara a Cidadelhe num trapézio de vertigens, por ladeiras que subiam para o céu, como nos tempos antigos de guerras já perdidas, com pragas desesperadas a explodir entre ferros, entre nuvens. Logo veio a consolar-me uma lua bolachuda, redonda, tentadora, erguendo-se a deslado da Marofa. Foi só então que o peito serenou, e eu lembrei-me do mestre Saramago, da Viagem a Portugal, e desta peripécia que aí fica.
A tarde estava amena, soalheira e natalícia, e assim fui a Riba-Côa. Gastei-a em descampados visigodos, entre casas de pedra e muros leoneses despovoados de gente. Que anda outra vez por longe, na cidade ou na Suíça, nalgum lugar onde ainda houver trabalho.
Vi aldeias em que nunca tinha estado, e escassas figuras citadinas que vieram da cidade à Consoada, com agasalhos quentes no frio do lusco-fusco. E madeiros de Natal a arder pelos adros.
Lá foi a tarde serena, entre histórias e lembranças, e plácidas oratórias, num mundo em guerras abertas.
*** Viagem A Portugal, José Saramago, Ed.Caminho/Círculo de Leitores, 1981