«(...) Os dois solares vieram a ser cenário de dramas dum romantismo tardio, se for verdade que o bom do romantismo escolhe idades. Estes dramas ficaram na memória, e eram matéria da pena do Camilo original. Na falta dele, contentou-se o viajante com o relato aligeirado do Camilo anfitrião.
A fidalga era uma das filhas da casa dos visscondes e nasceu em Salamanca. Corriam por então os tempos da República e os ares andavam torvos, dos brados de carbonários e pedreiros-lives. A quem trouxesse a consciência mais pesada, com motivos ou sem eles, só restava uma saída: passar de noite a fronteira e resguardar-se. Foi o que o visconde fez, enquanto se esfumava a poeirada. E assim nasceu em Castela uma fidalga, que se já vinha dotada de condição e prebendas, mais medrou com as bênçãos da natureza.
Junto dos condes de Almendra encontrara entretanto acolhimento um mocetão de Foz-Côa filho natural dum Távora remoto. A seu tempo se fez médico, a encargos do patrono. E foi o primeiro passo para vir a ser nomeado delegado de saúde, e administrador do concelho, e mais tarde o homem forte da União Nacional, um feudo de patriotas.
Quando lhes chegou a altura, o médico de Foz-Côa e a fidalga dos viscondes deram o nó sacramental. Ela juntava aos predicados naturais o património. E ele acrescentava o ceptro da autoridade, a figura impositiva e o poder. É com tais coligações que se edificam reinados.
Se o homem tinha má fama, o proveito era melhor. E famas leva-as o vento. O terror que infundia às criancinhas, quando acorriam de garganta aberta a mostrar-lhe o garrotilho, só achava paralelo no rancor dos camponeses , que no lagar lhe sofriam o esbulho da funda a cinco. Por cem quilos de azeitona recebiam cinco litros, era pegar ou largar. Pior só assaltantes de estrada.
Os encontros da família, no repasto do jantar, eram momentos de aspérrima doutrina. Ninguém ousava uma fala, qualquer simples transacção só através do mordomo. Às fêmeas e aos mais pequenos fê-los Deus para obedecer, lá dizia o mandamento. Quanto ao resto o doutor tinha no Porto, para reserva das hormonas, uma amiga de casa e pucarinho.
A fidalga era dez anos mais nova. E tinha uma figura de menina que fazia rir as rosas, quando descia a sentar-se no caramanchão. Os filhos foram chegando, como frutos naturais, conforme Deus os mandava. Só às vezes um reflexo no espelho do toucador, ou uma lágrima furtiva no recesso da alcova, traíam inconfidências que o peito ainda recusava e o tempo foi agravando.
Não era ela senhora de ir à rua, nem de seu tinha um tostão. E só a cumplicidade duma ama compassiva lhe permitia vender às escondidas uma medida de azeite, duas fanegas de trigo, para dispor dumas moedas. Fosse ele por ciúme ou por doideira, o doutor era um algoz. Humilhava a fidalguita diante das visitas, mais que uma vez lhe pôs as mãos na cara.
Quando à ama lhe cheirou a história do Mal-Casado, deu-lhe o coração um baque. A fidalga abria o corpo ao serviçal, estendida na tarimba das cavalariças. E sorvia dele, em ânsias, o fio de humanidade que de outro lado não vinha. - Muito mal vai à colmeia, se a rainha se tresmalha! - gemia a pobre da ama. Mas nem ela imaginava o que estava para chegar.
Um certo dia a fidalga preparou a diligência, desceu à estaação de Almendra e foi visitar os filhos que estudavam em Coimbra. E lá se tomou de amores por uma visita da casa, um estudante de leis que não chegaria a bacharel, dadas as prioridades. E quando ela, à procura dotra vida, deixou para trás a Família, o doutor encomendou a Pátria a Deus e acabou a resignar-se.
Não se sabe ao certo por que enredos, o casal foi parar a uma pensão do Porto, ali à rampa da Escola Normal. E um dia embarcou para a África, que sempre foi bom refúgio dos desesperados. A seu tempo, e abreviando razões, uma vez que se finara o patriarca, voltaram ambos a Almendra e ao solar dos bonifrates.
Mas um dia há sempre um dia. E o bacharel, que nunca chegara a sê-lo, veio a saber dos sucessos com o Mal-Casado, e dos antigos enredos de tarimba, por denúncia dum criado. O bacharel quebrou e foi-se embora, ela ficou e morreu. E ainda vive em Almendra quem se lembre da fidalga na feira de Trancoso, a comprar ovos de pata, se não antes a vendê-los, quem o saberá dizer. (...)»
[PORTUGALMENTE - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Ed. Âncora, Lisboa, 2012]