sexta-feira, 31 de maio de 2013

Outro do Herberto

«É o tema das visões e das vozes, um pouco ameaçador agora quando se lembra aquilo por que se passou. Era o costume das infâncias: viam-se faiscar os rostos, súbitos como pedrarias nos quartos obscuros, assemelhavam-se a alvéolos de colmeias uns sobre os outros. Na cama, escutava-se um clamor, os melhores instantes concentravam-se ali, que apuramento de palavras, de frases, de anúncios, e aquilo ascendia no silêncio, era a nossa música que se compunha, e em baixo mas inteiro nos dons, em estado de graça, respirávamos temerariamente. Estávamos atentos às matérias e sopros do mundo expressos em imagens e vozes autónomas. Nem sequer nos apercebíamos bem de que as noites separavam os dias: era verão. O espaço, os encontros, as caras, o cabelo das mulheres, roupas estendidas a suar, o vento amplo, grandes pedras, grandes girassóis, a fruta amarela, os bichos. Crescíamos no meio do atordoamento de flores e animais, crescíamos assim. Uma noite acordei com o som dos meus próprios gritos. (...)
Era a ordem ininterrupta das magias: à meia noite de sábado cravava-se uma faca no tronco das bananeiras, ia-se ver logo pela manhã, a seiva ácida deixara enigmáticas figuras na lâmina, decifrávamos, tínhamos inspirações, revelações: um cavalo, uma águia, um tigre, uma cobra, um leão. As bananeiras gemiam de noite: a sua carne rasgava-se por uma força que vinha de dentro, e das feridas brotavam os rebentos: cachos, frutas de ouro. (...)»
[Do prefácio, em prosa de poema]


saio hoje ao mundo,
cordão de sangue à volta do pescoço,
e tão sôfrego e delicado e furioso,
de um lado ou de outro para sempre num sufôco,
iminente para sempre.
                                    23.XI.2010: 80 anos

Servidões, Herberto Helder