[Ao meu amigo Caldeira, em Riba-Côa]
O avô João foi moleiro anos e anos, antes de ser hortelão e se resumir à horta à beira da ribeira. Trabalhava num moinho ali à Barca, e uma vez fui lá com ele. Dum lado punha a rodar a mó alveira, que o rodízio empurrava, a espadanar quando ele abria a levada. Do outro tinha hospedado um grande macho eguariço, que passava o tempo a ruminar uns fenos. Era um bicho escuro, de respeito. E fez-me cara de poucos amigos, quando me viu especado a olhar para ele.
Mas as águas no açude eram escassas, vinha o Verão e a mó alveira não fazia mais farinha. O macho ruço não gostava de jejuns nem dispensava o feno. E o avô João deixou de ser moleiro. A contribuição é que não desapareceu, lá vinha todos os anos. Bem reclamou ele nas finanças:
- Há um ror de tempo que deixei de ser moleiro...
- Enquanto o moinho se conservar de pé! - explicou-lhe o burocrata.
Assim o avô João voltou a casa, entendeu-se com a mulher, pediu a ajuda dos genros. Esqueceu-se de labutas antigas, meteu uns ferros às pedras, no final da manhã só restava a mó alveira, que levaram para o quintal da dona Lia. Era o mundo a fazer pouco dum homem, custou-lhe os olhos da cara. Mas lá voltou às finanças.
- Agora sim, não há mais contribuição! - E o burocrata passou um traço vermelho numa folha dum livralhão que lá tinha.
Mas a horta também precisava de água. E mais no Verão, que aquilo é uma sequia em Riba-Côa, quando a ribeira lhe falta.
- Ele um poço...
O avô João pôs-se a matutar no caso e encontrou-lhe uma saída. Era pôr-se a caminho da Argentina e aforrar algum dinheiro. Não andara já por lá o Zé Maria, o Tónio, o Zé barbeiro... E lá foi um grupo deles, pela Estremadura abaixo, passaram por Moralejo, Villafranca de los Barros, Jerez de los Caballeros, Aracena, numa barcaça atravessaram um rio, logo arribaram a Cádiz. Eram um grupo de animais amontoados no convés dum vapor, que se pôs a fumegar pelo mar afora. Foi a rijeza do corpo que os salvou.
Dois anos passou o avô João montado num cavalo, a apartar gado numa quinta que não conhecia começo nem fim. E um dia disfarçou um saquito com dinheiro pespontado nas bragas e voltou. Logo se pôs a construir o poço na horta da ribeira. Ia montar-lhe uma nora a andar à roda, água é que não havia de faltar.
Andavam eles a empedrar o poço, de noite veio o diabo, alguma bruxa invejosa, quem vai agora saber. Ou foi Deus, sabe-se lá! O poço desmoronou-se, assapou, desapareceu.
O avô João já conhecia o caminho. Voltou a Cádiz, voltou ao mesmo convés dum vapor enferrujado, voltou à quinta que não tinha fim. Voltou a andar a cavalo, voltou a apartar o gado. Voltou a disfarçar um saquitel com dinheiro pespontado nas bragas, e voltou a abrir o poço. Empedrou-o a preceito, ainda hoje lá está. Foi a rijeza da alma do avô João que o salvou.