terça-feira, 28 de maio de 2013

A Vénus do rio Gabriel

Nesse tempo viviam em Angola cinquenta portugueses. Nada como hoje, que são trezentos mil. E o rio Gabriel era um leito de areias a descer do planalto, à procura do mar: um promontório ao longe, uma enseada amena, uma praia circular ao fundo da falésia, que mergulhava a pique. 
Varadas à beira de água meia dúzia de pirogas, em que os mainatos do Mário Cambuta arrancavam aos fundos cardumes de lagostas. Serviam-nas grelhadas à hora do almoço, à sombra duns tabiques de folhas de palmeira. 
Quando acabava a jornada de trabalho, eu descia sem demora o areão do rio a cavalo no Toyota e só parava na foz. Estendia-me em pelota numas rochas, olhava o promontório escuro ao longe e lia. E foi assim que li os oito mil oitocentos e dezasseis versos d'Os Lusíadas, e pela mão do Virgílio corri os círculos todos da Divina Comédia.
Aconteciam às vezes chuvadas diluvianas, e o rio Gabriel era vê-lo a correr. Arrastava encosta abaixo toneladas de areia que despejava no mar. Depois vinha a maré, lambia a praia, aplanava aquilo tudo. O chão era movediço e um dia o milagre aconteceu: ao chegar à foz do rio, dei com o vulto duma Vénus de pedra estendida no areal. Era só um torso dela, mas o que não se via não fazia falta. Um ombro reclinado, um ventre misterioso, o flanco duma anca, duas coxas apartadas, o talvegue dum abismo, e dois joelhos que a areia já escondia. A maré deixara a descoberto aquela aparição.
Semanas e semanas voltei eu, à procura da Vénus, no final do dia. Mas a maré avara nunca mais ma desvendou.