Primeiro foram as peripécias vividas por quinze regimentos espanhóis, em 1808, mandados para a Dinamarca a resistir aos ingleses, nas campanhas do Petit Cabrão do Bonaparte. Aqueles que não lograram atingir a nado os barcos ingleses, que os devolveriam a Espanha, foram parar a um campo de concentração em Hamburgo. E acabaram alistados à força, em 1812, para a campanha da Rússia, ao serviço da Grande Armée. Encontraram uma cidade fantasma, desfalcados pela carnificina de Borodino e pelas desgraças de Sbodonovo. Mais uma vez ensaiaram passar-se para o outro lado. E aquilo que os impediu vem lá no texto.
Qualquer texto narrativo que mereça registo responderá ao menos a três questões do leitor mais comum: O que é que ele nos conta, de que maneira o faz, e com que finalidades.
Esta novela A Sombra da Águia responde a tudo isso com eficácia notável. Usando um sarcasmo persistente e um humor magistral, a voz narrativa, que é sempre espanhola, revela-nos uma visão mordaz e descarnada da guerra e da condição humana. Está escrito na badana. Mas se não levarmos a coisa tão a sério, o seu objectivo é divertir-nos. Diria mesmo encantar-nos. É essa uma das funções, entre outras mais sisudas, da geral arte e da mais particular literatura.
Está o bom do leitor a rebolar-se de contentamento, quando lhe caem em cima os dois últimos capítulos, a contar-lhe a retirada duma Moscovo em chamas e a fuga ao inverno russo. O que era prazer estético transforma-se em pathos trágico e compaixão humana. Anos mais tarde, dos quinze mil espanhóis originais, onze regressam a casa. E o leitor não chegará a distinguir o que é histórico daquilo que o não é. Porque a história não é tarefa da literatura, salvo o respeito pelos seus dados mais prosaicos. O que à literatura incumbe são as emoções humanas, as melhores e as piores. E Reverte trata delas muito bem.
A tradução de Helena Pitta é irrepreensível. E será de aproveitar, leitor empedernido, no deserto impenitente e satisfeito que aí anda!