Nessa altura o panzer que ali tenho já perfazia o seu quarto de século. Mas eu ainda não tinha descoberto que mal chegara ao fim da puberdade.
A coisa começou no alto do Caramulo, no antigo IP5, esse aborto cavaquista que deus tenha. Ouvi um forte estalido, rosnei um mau Maria!, desisti de ultrapassar o camião e deslizei para a berma. A caixa de velocidades bloqueou. Eu liguei um telefone, falei com o mestre Chico, mais tarde veio um reboque e passadas duas horas estávamos na oficina. Uma patilha do prato da embraiagem havia claudicado.
O mestre Chico tem muitas qualidades e um enorme defeito muito antigo: preocupa-se com o lixo que há no mundo, abomina a sucata acumulada, despreza a obsolescência programada e acredita que a poupança calvinista é um princípio respeitável. Explora os materiais até ao fim. E eu, no meu elástico rigor pós-modernista, aceitei que ele instalasse um prato novo e deixasse ficar o disco velho, que estava ali para lavar e durar.
Mas a mocha não dava com a cornuda, e durante um mês foi o cabo dos trabalhos. As mudanças arranhavam, iniciar a marcha era sempre um sobressalto, o cruzeiro mais normal acabava a patinar. O panzer parecia amotinado, e eu concluí que estava velho. Um dia arranjei-lhe um companheiro novo, enquanto fui tratando de lhe instalar uma embraiagem decente.
O sócio verde era um pininfarina, fazia invejas na rua. Viajar nele trazia prazeres novos, um conforto que me era desconhecido, e uma rapidez que nem vos conto. Cada quilómetro de estrada custava três vezes mais, mas fazia ultrapassagens de improviso, ao mais ligeiro assobio. Muita vez me fez lembrar a esbelteza dum Spitfire a riscar os céus de Londres, há meio século atrás. Era o carro mais bonito do hemisfério, muito bom para se ir às gajas, disse-me um dia um amigo azougado que acreditava em milagres. Eu não fui nessa conversa. Mas cheguei a pagar multas por manobras arriscadas.
Entretanto a embraiagem nova remoçara o velho panzer. Voltou dócil, comedido, com ares de velho duque. Arrancar era um sossego, acabou a chinfrineira, mais parecia, o velho panzer, ter saído ontem da fábrica. Deixava-os passar na estrada, ria-se do frenesi, mantinha as hierarquias. E eu deixei de pagar multas.
Acabei por oferecer o sócio verde a alguém que precisou dele. É certo que, lá no fundo, ele era um pininfarina. É certo que ele me trouxe assinaláveis emulações estéticas. Mas certo é ter sido através dele que eu tive parte na puta da dívida soberana, a tal que é filha do Sol e das galdérias do Sul. A tal que os bons calvinistas nos invejam, mas dizem que não toleram. Por motivos da aldrabice miserável da poupança calvinista.