sexta-feira, 4 de março de 2016

Filósofos e eruditos

«Um estranho fenómeno aconteceu na Culturgest todas as segundas-feiras de Fevereiro ao final da tarde: uma multidão de centenas de pessoas acorreram para ouvir as conferências de Maria Filomena Molder (MFM), um ciclo chamado Não te esqueças de viver
No primeiro dia, grande parte desta multidão não teve lugar no pequeno auditório. Nos outros dias, as conferências foram deslocadas para o grande auditório, que ficou cheio, mesmo estando assegurada a transmissão em streaming. MFM foi professora no curso de Filosofia da F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa, mas é uma explicação insuficiente pensar que um tão vasto público é constituído pelos seus ex-alunos. (...)
Por outro lado, MFM nunca trouxe a filosofia para a praça pública, para os media, como alguns psicólogos, sociólogos e tutti quanti. Nem praticou uma filosofia pop. Nem fez do exercício filosófico uma disciplina oracular e de sapiência. (...) E jamais concebeu a filosofia como guia para a vida e instrumento terapêutico, à maneira das “consultas filosóficas”. É verdade que de Sócrates ao estoicismo e ao epicurismo a concepção da filosofia como “exercício espiritual” e as suas práticas de reflexão e leitura forneceram o modelo para as “consultas” onde se pratica a “filosofia aplicada”. (...)
Esta reflexividade é um modo de pensar digressivo, muito livre e apto à divagação, mas sem cair na arbitrariedade. Assim, a exposição filosófica não é temática e disciplinarmente limitada. Daí, uma outra característica de enorme alcance das exposições orais de MFM: a leitura e a interpretação de textos da mais variada proveniência (um poema de Joaquim Manuel Magalhães pode vir na sequência de uma proposição de Wittgenstein). (...)
A conclusão que devemos retirar do que aconteceu na Culturgest (mas quem esteja atento descobre-o também noutros lados) é que há um público numeroso e exigente, para o qual quase não é feita a edição, nem as livrarias, nem as revistas, nem os jornais e muito menos a televisão e a rádio. É um público espoliado, condenado ao afastamento para o espaço privado, expulso de uma esfera pública moldada por ditames que nem lhe dão direito à existência.»
[António Guerreiro, in ÍPSILON]