segunda-feira, 28 de março de 2016

Compasso

[Ao António Zé de Almeida]
Retomaram na aldeia o ritual do compasso pascal. E assinala-os a campainha à frente, cristalina, a anunciá-lo.
- Benvindo, padre!
- Boas-festas, aleluia, aleluia!
O rapaz, de alva cansada que o cíngulo compõe, já desce o pátio, Atrás os crentes, o vulgo, os que vieram de longe por três dias.
- Bem sabe que eu não pratico, de católico ou de nada. Sou este estóico frugal, semi-pagão, um olhador do mundo. Encontrei aqui sossego.
O padre entra, eu acompanho. Se viu, não sei o que observou. Abro os braços e a multidão avança, a rodear-nos na sala. Ele mergulha o hissope na caldeirinha de prata, asperge um nada, Deus abençoe esta casa! O povo entoa aleluias. E lamenta, quem o sabe, tamanha nudez da mesa, um açafate entrançado e africano, as nozes secas, laranjas, as amêndoas de Foz-Côa, e as bolachinhas de aveia que vieram da Cabreira. Nem repara nas flores daquele jarro, um ramalhão de alecrim com explosões de narcisos. Nem se vê o envelope do folar! - Isto onde faltar mulher!...
Acorre já, muito afoito, o acólito da cruz, alçada aos lábios do anfitrião. Este encara-o amistoso, um mínimo gesto da mão, um olhar claro nos olhos. Ele entende, afrouxa os braços.
Ofereço ao padre um café, um Porto decorativo que além está e ele não quer.
- Por que razão tem aqui este Cristo artesanal?
Conto-lhe a história edificante. Ele sorri.
-Há uma coisa que lhe ofereço, é a melhor! A paisagem que ali está, em frente do alpendre!
Saímos ambos, espraiamos o olhar.
- E sente-se bem aqui?
- Não desejo outro lugar! E aquela encosta foi a coisa original que me entrou olhos adentro, quando os abri pela primeira vez, há muitos anos . Tudo era verde, das copas dos matagais que a vestiam. Hoje é assim.
Reentramos, o compasso vai partir. Agradam-me ecumenismos destes, tolerâncias e humanidades...
À saída vai o acólito, a cruz de prata num braço.
- Acautele essa cruz, homem de Deus! Maré de lha assaltarem, era pena, e anda Deus muito ocupado!
O padre ri. E um dia destes é melhor ir à procura de um cofre de guarda, onde estes objectos litúrgicos fiquem salvaguardados. Convirá não esquecermos esse tempo em que o rebanho de escravos era celebrado com esplendores de prata. Talvez concordem o padre, o sacristão e as beatas.