segunda-feira, 28 de março de 2016

Caraça dizia assim, em 1933:

«(...) Dizer-se que a época actual é caracterizada essencialmente por uma perturbação e inquietação vivas, é já quase um lugar comum, de tal maneira isso se impõe, mesmo após o mais superficial exame. Não é, contudo, demasiado repeti-lo, pois há muitos sujeitos de ouvido duro que ainda o não compreenderam ou não quiseram compreender, e que, numa cegueira teimosa, continuam a querer aplicar, para medida de valores numa sociedade abalada nos seus fundamentos, aqueles padrões cujo uso já de há muito não é legítimo.
Desenganem-se essas pessoas. O que estamos actualmente vivendo e sofrendo, não é apenas uma borbulhagem fugaz, destinada a passar como tantas coisas passam, sem deixar sinal; é, muito pelo contrário, uma época de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que desaparece e o que vai surgir. E nessa ponte de passagem chocam-se todas as correntes, coexistem todas as contradições, fazendo dela aparentemente uma feira de desvarios e, na realidade, um formidável laboratório de vida.
Época singular! em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização - Einstein e Broglie - e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece.
Época em que é possível um tal campear do cinismo que um ministro holandês propõe, numa conferência internacional, a interdição do bombardeamento aéreo do inimigo em tempo de guerra, para que alguns dias depois um avião holandês lance, sobre um barco holandês, em tempo de paz, uma bomba que semeia a morte a bordo. (...)
Época em que se verifica um tão grande desprezo pela existência alheia que na sombra se prepara, metodicamente, sistematicamente, cientificamente, a destruição do homem, mas em que ao mesmo tempo existe uma tal admiração pelo corpo humano que, num vasto movimento de cultura física, ele se enaltece e glorifica no que tem de nobre e belo - antítese simbólica do nosso tempo: preparação da guerra química e salão do nu fotográfico. (...)»
[Bento de Jesus Caraça, Conferências e Outros Escritos, Lisboa, 1970]
Parece hoje!