quinta-feira, 31 de março de 2016

O dia e a noite, na poesia

O pequeno boi
O pequeno boi
cinzento
claro
ruminando.
Leio-lhe um poema.
Fita-me
com olhos de desinteresse
crescente.
Mergulha a cabeça na erva
alta
húmida.
Não quer saber de poesia
e de outras inutilidades.
Quer saber
(quero saber)
das palavras que se desfazem
na boca
das sílabas que vivem
no feno
do pequeno bicho
que pousou neste momento
no orvalho das letras.
[Acidente poético fatal, Américo Rodrigues, 2011]

EXISTÊNCIA (IN)SENSÍVEL
A maioria comanda-nos. Não se substimem os seus vícios. A improbabilidade aritmética de se deterem nas suas arremetidas infunde, pelo menos, desassossego. Assim, a massa informe reconhece o seu próprio poderio e não hesita em desferir estocadas letais sobre o ente indistinto que supostamente a escolheu. Vela o silêncio. A mudez. A letargia dilata-se para além do horizonte. A Lua está cada vez mais ao alcance da mão. O Luar é que não. Secretamente ousamos fantasiar manhãs de oiro. Ousamos desviar-nos do percurso. Ousamos recusar o indistinto. A farda. O compasso. A norma. A cadência. (...)
[Do modo anómalo de Existir, João Mendes Rosa, 2009 (?)]

O primeiro texto é poesia de ontem. Poesia pura, com estéticas de agora. Polissémico, contém mais que quanto afirma, admite várias leituras.
O segundo é também de ontem. É confuso. E se a tiver, contém uma só leitura. Parece um manifesto ideológico, ou anseio de elitista. Será ele um panfleto militante? Ou excerto dum ensaio sobre maiorias democráticas? De poesia nem ecos.