quinta-feira, 31 de março de 2016

Ainda a poesia e o seu dia

A BMEL organizou uma palestra para divulgar três poetas da cidade: um de hoje, reconhecido e moderno, que não despertou surpresa. Um outro que os arquivos não guardaram. E um terceiro, motivo de epifania, tardia revelação surpreendente.

EVOCAÇÃO DA ALDEIA
«Não há tristeza no pequeno burgo.
Há casas brancas que a Câmara mandou caiar
E outras mais sujas por dentro que por fora
E em que a Câmara ainda não reparou.
Há campos à volta com searas fartas
E oliveiras nas "arribas" de senhores de gravata
Que engordam seus cofres com juros a dez por cento.
Há silêncio nas noites longas de Inverno
E um campo grande de debulhas, um campo muito grande,
Que o povo teme seja roubado para as aves metálicas do céu.
Há garotio de pé descalço e jornaleiros de olhos cabisbaixos
E vinhedos em promessa e as cubas esperando...
Não há tristeza no pequeno burgo.
Há sonhos de partida, cartas de chamada que sempre se esperam
E nunca mais chegam. Há namoros e zangas
E uma morena que põe malucos os olhos dos rapazes,
aos domingos.
Não há tristeza no pequeno burgo.
Há o salão onde quatro maiorais jogam a sueca
Com medo de perder os cinquenta centavos dos "baratos".
Há bandos de estorninhos nas casas novas da estrada
E dinheiro que vem do Brasil e da África, a prestações...
Há a dor das horas frias e as sestas esticadas do Estio.
Há o trabalho e o suor e o pão e a falta dele.
Não há tristeza no pequeno burgo.
Há luz eléctrica e telefone e duas carreiras de camioneta
Que trazem a férias os parentes que vivem na cidade.
E há um padre que prega o amor entre os irmãos
Aos domingos e dias santos, na Missa das onze.
Um padre que é poeta e sonha as desventuras do seu povo
Em versos que o seu povo não conhece.
Não há tristeza no pequeno burgo.
Há tudo isso e uma igreja de torre separada
Com um relógio que em certos dias não dá horas...:
- Suspende a vida num silêncio espacial, carregado
de mistérios!»

O poeta usa pseudónimo e é padre. O lugar evocado é Mata de Lobos, em ano desconhecido da década de cinquenta. 
Uma ironia amarga, um bom sarcasmo, um toque de erotismo. Um ritornelo tranquilizador. Socialmente empenhado, porém longe do neo-realismo. É um pastor velando o seu rebanho frágil, sem proselitismos pios. Nos últimos versos uma fuga: para que transcendente?
O verso é livre, e é moderno e branco, e há nele os andamentos e harmonias dos universos da música. 
Para este leitor, foi uma revelação. E a pergunta sem resposta: porque é que o Vasco Miranda, com a qualidade que ainda hoje tem, foi clandestino na altura, e ignorado até hoje?
Noutro poema que se não transcreve (RECUSA, dedicado a Alberto de Serpa), Miranda expõe o seu cosmopolitismo, enquanto se declara poeta provinciano. E fustiga os poetas rendilheiros e vaidosos, que em nome da religião, em nome da estética, em nome da dignidade, em nome da polícia, o acusam de ser um vendilhão do Templo.
Seja lícito ver nele uns ecos de arcadismo (C. Garção), de Cesário Verde e as frutas da quinta... porém não do primeiro modernismo, ou do segundo, com surrealismos, --ismos e outros ismos. 
Alguma prolixidade, indesejável hoje.