segunda-feira, 21 de março de 2016

O céu e o firmamento

Tudo começava assim. A moleira passava lá por casa e carregava três fanegas num grande macho que tinha. Descendo a encosta, o bicho podia bem. E lá seguia, à beira da ribeirinha. No moinho dava o grão à mó alveira, que rodava noite e dia, quando a levada corria. Em lhe calhando vinha trazer a farinha, descontada da maquia.
Em casa havia um local chamado o peneiradoiro, que ficava atrás do forno, ao cimo da escadaria. Sempre coberto dumas poeiradas, nunca gostei de lá ir pelos espirros que me dava. Ao longo duma parede era a masseira, e em cima dela as duas tábuas da zornideira. Eram macias, ao toque dos dedos. E era sobre elas que as mãos da minha mãe abanavam as peneiras a roçarem entre si. A farinha caía na masseira e o farelo das peneiras ia parar a um saco. Os bichos gostavam dele, os porcos disputavam-no nas pias. E muitos anos depois vim a saber que os porcos de hoje também lhe chamam um figo, quando o pressentem na pia. Mas lá em casa nunca entrava no pão.
Com água quente, as mãos da mãe amassavam. E misturavam na massa a malga do fermento, uma pasta mal gostosa que um bom pão não dispensava. As vizinhas que o não tinham apareciam a pedi-lo. Voltava sempre uma parte, na malguita do fermento que assim voltava à masseira. 
Quando a massa estava pronta, ficava um tempo a fintar, aconchegada num lençol de linho. E se era Inverno tinha sempre uma braseira por baixo. Para se aquecer, que o calor poupava tempo. Mas a mãe é que sabia. 
Estando finto, era só fazer os pães, Ela dividia a massa com a palheta, uma raspadeira de metal. Dava voltas, rebolava e enformava, fazia um gesto por cima e por vezes murmurava. Palavras que nunca ouvi. Raspava os cantos todos da masseira, e arredondava umas bolas de restos, para dar à canalhada que se pelava por elas. Ia alinhando os pães nuns tabuleiros, por cima do lençol branco. 
A tarefa de esquentar o forno era sempre do meu pai. E da canalhada toda que subia escada acima com molhos de lenha às costas. Era uma consumição, que a lenha era sempre verde e nunca estava cortada. Desleixos de quem mal satisfazia as obrigações que tinha. Mas o forno lá aquecia.
Encostadas à parede, havia ali três varas de pinheiro, que chegavam ao telhado. Eram as ferramentas da função. A pá de ferro que punha e tirava os pães, o rodo de madeira e o vassoiro, para limpar o lar do forno. Era este um ramalhão que ele fazia, dos buxos do quintal. Também podia ser de hera, mas nunca era. Juntava o brasido todo ali à boca do forno, metia os pães lá para dentro, e fechava tudo com uma porta de ferro. Ainda hoje sinto nas bochechas o calor que me queimava, se aproximava o focinho. 
A certa altura tirava ele um pão. Experimentava um, tirava outro do fundo, batia com os nós dos dedos, procurava uma toada. E quando bem lhe parecia fazia avançar a pá. Os pães acabavam empilhados nos mesmo tabuleiros que já os tinham trazido. Ficavam a arrefecer e voltavam à masseira, cobertos pelo lençol branco. No Inverno duravam quinze dias e tudo se repetia. No Verão o tempo era menos, porque havia mais bocas a alimentar. 
Quando era tempo de secar os figos, aproveitavam-se os restos do calor. Lá vinham em tabuleiros do sequeiro, construído no quintal, traziam tardes de sol. E acabavam numa camada de palhas, sobre os tijolos burros do lar do forno. 
Pertencia à canalhada a última tarefa. Já era fácil porque o forno estava frio. Entrávamos lá para dentro de joelhos, enchíamos cestas deles. E ainda hoje sinto em cima da cabeça o céu do forno, que era áspero e rugoso e carregado de mistérios. 
Só muitos anos mais tarde é que uns livros me ajudaram a entendê-lo. O céu côncavo do forno da infância, e o firmamento que lá fora está, onde uns deuses se refugiaram.