quinta-feira, 10 de março de 2016

A lei, o estado de direito, o caso Sócrates, e o meu caso pessoal

Apelidar-me de exótico socratista é tão erróneo e apressado e enganoso como usar a abreviatura duma coisa que é complexa. E mais exacta.
No dia 26 de Novembro de 1975 deixei de me apresentar no local de trabalho que me fora atribuído pelo Estado Maior, e onde há dois meses vinha desempenhando tarefas vazias e sem sentido.
Na véspera envolvera-me em gestos coniventes com as tropas paraquedistas, que exclusivamente pretendiam substituir o chefe do EM, depois que se tornou claro, no fim do Verão quente, que o seu objectivo era dissolver o regimento de Tancos. Era um general que tínhamos graduado para nos comandar, porque o geral do resto era imprestável.
Homiziado como traidor, a minha cara foi apresentada entre outras na televisão, com apelos de denúncia e de prisão. E a decisão de me não apresentar apoiava-se na recente lembrança do Chile, onde estádios de prisioneiros foram aniquilados pelo Pinochet, a mando da CIA. Em bom rigor, não andámos longe disso!
Se me apresentasse, seria para ser preso e ir parar a Caxias, a Custóias, a Santarém, onde centenas de outros militares, agarrados à mão, já estavam numa cela, E quem sabe com que normas eventual julgamento viria a ser realizado!
Na dúvida, paus por baixo: não fui, e constituí-me na situação de desertor. Por decisão administrativa, o chefe do EM demitiu-me por deserção, apagou-me do meu quadro. E eu permaneci dois anos como clandestino, desaparecido da paisagem.
Logo que se tornou claro que um eventual julgamento respeitaria as leis, apresentei-me. E depois de em Caxias ser ouvido por um juiz do processo do 25NOV, foi-me ordenado que aguardasse em casa o julgamento. Só fiquei atrás das grades durante uma semana.
Este nunca mais foi feito, que os seus autores temeram tornar-se réus. Mas eu estava demitido, e dediquei-me a reconstruir a vida. Existia, porém, este pormenor legal: constituir-se em situação de deserção não equivale a cometer o crime de deserção, pelo qual fora demitido. Porque há razões justas para a não-apresentação, assim como delas há que não o são. Só um juiz pode dirimir umas das outras, e nenhum deles se havia pronunciado. 
Mas não parecia ele que eu tinha desertado? Parecia, sim senhor! Porém não era a verdade toda. Meti um processo num tribunal, alegando o pormenor.
Passaram tantos como vinte anos. E finalmente um juiz lavrou esta sentença: ao demitir-me por decisão administrativa, o chefe do EM tinha violado a lei e usurpado poderes que não eram seus. A nova chefia da FA não podia mais que executar a sentença. E a minha demissão deixara de existir.
Sócrates esteve preso durante um ano para investigações, baseadas em suspeitas, em dúvidas, em palpites, em ficções de novela policial. Há anos que ele é suspeito. E até agora não há acusação formulada, quanto mais um julgamento! 
As fugas (deliberadas ou não) ao segredo de justiça, publicadas na imprensa, já o mantêm condenado numa opinião pública sonolenta e comodista. Duma forma geral, os media não têm feito senão amplificá-las, ou viver à custa delas, condicionando assim o nosso julgamento. É a lei que está a ser violada, é o estado de direito posto em causa.
Mas não tá-se mesmo a ver que o Sócrates é culpado? Tá-se a ver, mas não o é. Antes de ser condenado por sentença, já transitada em julgado, nenhum arguido é criminoso. E se alguma vez o for, do que duvido, então também para mim ele será criminoso, megalómano, ladrão, responsável por todas as desgraças. Até lá é inocente, conforme dizem as leis. (Isto depois de ter sido, enquanto primeiro-ministro, um bom eco do Marquês de Pombal na nossa história! Opinião minha, claro, porque outra terão os Távoras!).  
Mas não sou um socratista de palas. Defendo as leis, isso sim, e o estado de direito que finalmente alcançámos, ao fim de séculos de arbítrio dos poderosos. O resto não é sociedade, antes uma confusa selva, onde os animais se escondem.