segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Um motim ou dois

Fiquei em sobressalto quando um guarda me enxotou da fila dos passageiros que saíam em Moscovo. – Transit! Transit! – rosnava ele. E tangeu-me para uma sala onde passei a tarde, à espera dum avião que só partiu à noitinha. E eu já não engolia nada, quando saí de Berlim.
As coisas foram assim. No princípio era a síndrome do Chile, um bocado assustadora. E sobressaíam nela as manápulas do Jara, a dedilhar a guitarra, esmagadas por uma coronha de M 16 num estádio de Santiago. Em Caxias, em Santarém, em Custóias, havia muita gente encarcerada. Na dúvida, paus por baixo! Mas quando se tornou claro que o sumo exemplo não era tomado à letra, havia que regressar. Logo se marcou um dia.
Na época tinha direito ao meu motim de amígdalas por ano. E era daqueles de caixão à cova, domado a bombas de antibióticos injectáveis. Dois dias antes apareceram os sintomas e eu fui logo ao hospital. Porém uma idosa Frau, impenitente e relapsa, não se deixou comover. Concedeu-me umas pastilhas para chupar, e lá parti no fio da navalha.
Alta noite apareceu-nos à distância o labirinto caótico das luzes do Cairo. A hospedeira distribuía laranjas, e achava estranho aquele passageiro que recusava a comida. Mas a manhã foi apanhar-nos em Aden, já aterrados às portas do mar Vermelho. Em rigor eu não vi mar, nem dessa nem doutra cor. E uns edifícios baixitos, que um desnaturado sol crestava, não eram um aeroporto. Tudo o que havia em redor era deserto e areias. E além, à meia distância, a reverberar na tremulina das dunas, umas silhuetas vagas de Migs adormecidos. Ao longe encerrava o horizonte uma hórrida montanha calcinada. Decerto foi este o seco, o fero, o ainda estéril monte da fábula lusíada. Eu crispava-me, gemia, padecia. Mas lembrei-me do mísero Camões, a marinar aqui a canção sete. Rezei-lhe um padre-nosso e conformei-me.
Pelo meio-dia entrámos em Mogadiscio. E invadiu a aeronave uma tropa de amazonas, a passear na coxia, no ar de quem ali vai em soberana missão. A hospedeira russa encostou-se no seu canto, os passageiros calaram-se, eu torcia-me com dores. Mas depressa deixámos a Somália, impacientes por chegar a Dar-Salam. Foi quando apareceram as palmeiras, o ar húmido, uns eflúvios tropicais. E, sem eu saber porquê, senti-me bem. Passeei no meio duns hibiscos, à sombra duns arvoredos, a fugir às laranjas da hospedeira. E à meia tarde dei comigo no Maputo, num calor destemperado, enfarpelado para os invernos da Europa. Já me julgava livre da prisão. Mas foi-me dito que não podia sair, que havia no passaporte um visto que faltava. Eu sentei-me ali num banco, deitei fora o sobretudo e claudiquei.
Muito mais tarde apareceu um diplomata, vindo em missão de resgate. Deixou-me num hotel que era redondo, talvez por isso lhe chamavam Girassol. E eu errei pela cidade a sonhar com uma farmácia, onde se desse o milagre de ainda haver Penadur, e uma alma caridosa a vender-mo sem receita.
E não é que o milagre aconteceu, na figura corpulenta dum buda de bata branca? Tinha-o lá e dispensou-mo. E eu logo comprei na rua um abacaxi dos grandes, deitei fora as pastilhas de chupar, fui estender-me na cama e auto-mediquei-me.
Dormitei umas horitas, quando acordei julguei que ia morrer. A garganta desfazia-se em mucos sanguinolentos, acastanhados, fétidos, se a morte tem um sabor era sem dúvida aquele. Fui-os soltando toda a madrugada. E quando a manhã raiou, meti a faca no abacaxi e devorei-o inteiro.
Depois passaram-se tempos à espera dum passaporte. Até que a assistente consular, grávida de algum deus maior, mo depositou na mão. Eu voltei ao meu nome de cristão, e foi assim que fiquei a conhecer a Nossa Senhora das coisas impossíveis que procuramos em vão, e a Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, do lírico do Campos, também eu cheio de uma oculta vontade de soluçar.
Mandei um telegrama para Lisboa, a dizer o avião em que chegava. E por respeito à lei das hierarquias, na gare estava um major que me levou a Caxias, onde fiquei numa cela quinze dias. Era arguido num processo colectivo, por traição e por motim. E um cordato meretíssimo, depois de ouvir e pôr muitas questões, ordenou-me que aguardasse em casa o julgamento. Ora nem eu tinha casa onde aguardar, nem o julgamento prometido aconteceu. Os seus autores preferiram arquivá-lo, não fossem eles acabar em réus. Eu achei bem. Pois razão contra razão, se algum motim houve ali, o deles foi.