Aqui há uns anos, antes de ser locutor voluntário na Sonora,
trabalhei uns tempos no banco alimentar de Perafita. O banco recebia donativos
em grandes quantidades, da indústria de conservas agro-alimentares. De Alcobaça
chegavam-nos camiões de latas de feijão, de pastas de tomate, de frascos de grão-de-bico
e feijão-frade. Sempre que nas linhas de fabrico uma máquina qualquer
maltratava uma lata, acabava ela rejeitada. Transformava-se num donativo que
rendia isenções, na contabilidade das empresas conserveiras. Mas as latas agredidas
apresentavam diversos graus de lesão, muitas delas eram lixo puro e simples. Porém
outras mantinham qualidade, perdendo embora estatuto de mercado.
Para lhes fazer a triagem, havia no banco alimentar uma
secção de entrada, rodeada de altas vedações. Esses e outros donativos passavam todos por lá. Chamava-se o Tarrafal, e eu era o seu director. Fazia a triagem do
que considerava consumível, e do que perdera préstimo. Milhões de latas e
frascos passaram-me pelas mãos.
Para fazer essa destrinça, utilizava eu uma ciência
empírica. Muitas vezes aquecia o produto e provava-o ali mesmo, outras levava-o
para casa e cozinhava-o, outras ainda utilizava os serviços do laboratório de
análise duma universidade do Porto.
Nunca fiquei mal disposto, nem sofri de indigestões, nem
me consta que alguém tivesse dores de barriga, ao consumir os produtos do
banco. E só uma vez duas freiras piedosas, duma associação de caridade,
recusaram receber um par de latas que estavam sem rótulo no cabaz
semanal.
No Tarrafal, as paletes dos caixotes que chegavam amontoavam-se
em rimas encostadas à parede, e eu ia-as retirando umas atrás das outras. Até
que a páginas tantas, num certo minuto duma manhã assinalada, precisei de
tomar um café. Tranquei o Tarrafal e fui à máquina. E a dada altura ouvi um
grande estrondo. Duas paletes lá do quarto andar tinham desabado exactamente no
ponto onde eu estava há um minuto a despachar as latas.
Nesse tempo eu era jovem, não tinha ainda que ratear
energias. Mas achei que 300 quilos a desabar-me no lombo era um peso exagerado.
E fui-me embora do banco.
Foi então que comecei a apanhar nos costados com uns poetas da Sonora! Entre tara e peso bruto, mal imaginava a tonelagem duns escriturários que lá andavam a escorregar das estantes, prontos a cair-me em cima! E que eu, naqueles começos,
não podia recusar!