sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Bancos alimentares

Aqui há uns anos, antes de ser locutor voluntário na Sonora, trabalhei uns tempos no banco alimentar de Perafita. O banco recebia donativos em grandes quantidades, da indústria de conservas agro-alimentares. De Alcobaça chegavam-nos camiões de latas de feijão, de pastas de tomate, de frascos de grão-de-bico e feijão-frade. Sempre que nas linhas de fabrico uma máquina qualquer maltratava uma lata, acabava ela rejeitada. Transformava-se num donativo que rendia isenções, na contabilidade das empresas conserveiras. Mas as latas agredidas apresentavam diversos graus de lesão, muitas delas eram lixo puro e simples. Porém outras mantinham qualidade, perdendo embora estatuto de mercado.
Para lhes fazer a triagem, havia no banco alimentar uma secção de entrada, rodeada de altas vedações. Esses e outros donativos passavam todos por lá. Chamava-se o Tarrafal, e eu era o seu director. Fazia a triagem do que considerava consumível, e do que perdera préstimo. Milhões de latas e frascos passaram-me pelas mãos.
Para fazer essa destrinça, utilizava eu uma ciência empírica. Muitas vezes aquecia o produto e provava-o ali mesmo, outras levava-o para casa e cozinhava-o, outras ainda utilizava os serviços do laboratório de análise duma universidade do Porto.
Nunca fiquei mal disposto, nem sofri de indigestões, nem me consta que alguém tivesse dores de barriga, ao consumir os produtos do banco. E só uma vez duas freiras piedosas, duma associação de caridade, recusaram receber um par de latas que estavam sem rótulo no cabaz semanal.
No Tarrafal, as paletes dos caixotes que chegavam amontoavam-se em rimas encostadas à parede, e eu ia-as retirando umas atrás das outras. Até que a páginas tantas, num certo minuto duma manhã assinalada, precisei de tomar um café. Tranquei o Tarrafal e fui à máquina. E a dada altura ouvi um grande estrondo. Duas paletes lá do quarto andar tinham desabado exactamente no ponto onde eu estava há um minuto a despachar as latas.
Nesse tempo eu era jovem, não tinha ainda que ratear energias. Mas achei que 300 quilos a desabar-me no lombo era um peso exagerado. E fui-me embora do banco.
Foi então que comecei a apanhar nos costados com uns poetas da Sonora! Entre tara e peso bruto, mal imaginava a tonelagem duns escriturários que lá andavam a escorregar das estantes, prontos a cair-me em cima! E que eu, naqueles começos, não podia recusar!