«(…) Bastava uma
chuvada para trazer a fome, num destacamento que partilhava com umas dezenas de
companheiros perdidos no sertão, ao lado duma sanzala miserável. Uma pista de
terra que as chuvas alagavam e onde ninguém arriscava aterrar, uns barracões
de madeira roídos da formiga, o paiol das munições e uma cozinha onde os ratos
faziam criação, no mastro risível do terreiro içavam às vezes a bandeira da
soberania. Comeram os mangos bravos da picada abandonada, perderam-se em
bandos no capim, de arma aperrada, sem avistarem um só dos burros do mato que
deambulavam na paisagem, sem poderem despejar-lhe no bucho um carregador
inteiro, a fome continuava e um dia Gaspar montou num velho avião e foi à caça.
O bicho estava no visor, partido em
quatro pelo retículo, o avião ganhava altura e despenhava-se sobre ele num
frenesi desesperado, alongando o focinho raivoso enquanto semeava estrondos na
paisagem. As armas espirravam frenéticas e ninguém podia perceber onde iam
parar as putas das balas, o bicho estava no visor e continuava aos saltos
provocantes no capim, se prolongarmos aqui a picada um segundo talvez nos não
escape, um só segundo e resgatamos o pundonor, mais um segundo e Gaspar sente o
avião a afundar-se no capim, sente-o a pentear os arbustos com o rebordo grosso
das asas, sente-o a rasgar a barriga no mato rasteiro, o bicho fugiu do visor e
parou de saltar quando um trovão lhe desabou no espinhaço e o matou.
Gaspar viu também a morte que ali
estava. Puxou o avião para o ar antes de a viseira partida lhe ter rasgado os
olhos, antes de o capacete se estilhaçar contra os ferros da carlinga, viu a
morte e execrou-a num clarão de raiva, e logo se deixou inundar por uma indescritível
renúncia, quase mística, quase doce, aquela morte era distinta e inelutável.
Caiu sobre ele um manto escuro de aniquilamento, perdeu a consciência por força
da violenta pancada na cabeça e já não assistiu à derrocada restante, nunca
chegará a perceber como saiu vivo daquilo.
Esperaram por ele em sobressalto os
companheiros, que ao longe o tinham visto desaparecer atrás da colina redonda.
Sabiam ao que andava, o suficiente para lhe entenderem as manobras, deram conta
de como o zumbir do motor se evaporara da infinita paisagem, e aguardaram que
voltasse a aparecer do outro lado do monte. Mas ele já não veio pelo seu
próprio pé, e ao fim de horas de busca tropeçaram nele a esgrimir contra
o capim altíssimo, enterrado até às partes nas lodagens dum charco onde as
pacaças tomavam banhos de frescura, a cabeça disforme alagada no sangue que lhe
espirrava das pálpebras em chaga, cego e alucinado, em busca dum caminho
improvável. (...)»
[As Aves Levantam Contra o Vento, Quasi Edições, 2007]
[As Aves Levantam Contra o Vento, Quasi Edições, 2007]