«A propósito dum deputado da República que invocava o humanismo como legitimação ideológica da lei agora aprovada, que criminaliza o abandono e mau trato dos animais (...).
Não é fácil desmontar as falácias e denunciar os encantos do humanismo hegemónico
— esse discurso das boas intenções e do senso comum que dispensa qualquer pensamento. E é certamente chocante para quem está imerso nele e não faz qualquer esforço para vir à tona, pois só sabe respirar nesse meio, receber a notícia de que o nazismo foi um humanismo. Claude Lévi-Strauss fez um requisitório ainda mais completo: o humanismo está implicado em “todas as tragédias que vivemos, primeiro com o colonialismo, depois com o fascismo, finalmente com os campos de extermínio”. É muito crime para tão beata entidade. Os animais não sabem que nós lhes demos nomes, que os classificámos e
categorizámos, que escrevemos que eles não tinham alma e que não eram dotados de logos (aquilo que faz do homem um “animal político”) e, mais recentemente, que eles não podiam ser sujeito do direito porque não são um sujeito moral. Os animais não sabem, tão-pouco, que passa neste momento um anúncio na televisão, da cadeia de supermercados Intermarché, onde se vê um pastor muito urbanizado e com aspecto de “empreendedor”, no meio de um prado viçoso, a olhar com alegria os bois e as vacas a pastarem. Esta cena bucólica, que faz lembrar a pintura inglesa do século XVIII, fecha com um incitamento a comermos bifes tenros e seleccionados das castas mais genuínas da espécie bovina. O humanismo é este anúncio e Treblinka é já ali, num supermercado perto de nós.»
[António Guerreiro, Ypsilon]