segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Campanhas

Ninguém tinha convocado cortes. Nem elas faziam falta nem viriam a propósito. É claro que havia oficiais, havia sargentos e havia muitas praças. Mas nenhum deles era o terceiro estado nem o seu contrário. Cada um fazia o que lhe competia, e o ar geral era o duma república.
Até no teatro de operações o inimigo se dividia em três. Um que estava ao serviço da CIA, outro que partilhava os missais do Lenine e os sonhos do Che Guevara, e um terceiro que era mercenário de quem pagasse melhor. Vigiavam-se todos uns aos outros, e trucidavam-se com afã comum. Resolviam-nos, a nós, delicados problemas.
Foi assim, com aguda surpresa, que um dia chegou à esquadra o herdeiro da Casa Real. Havia afinal resposta ao Ultimato, uma nova farronca miguelista, era a desforra de Alcácer?! Ninguém sabia dizer. Uma voz ainda falou de jogadas demagógicas dos mandantes. Mas a malta, no geral, dispunha dum vocabulário reduzido à técnica, e dum escasso volume de conceitos. E passou despercebida a sugestão.
Sua Alteza tinha cara de menino, de rósea carnação. E respondia às ironias plebeias menos condescendentes com dois hibiscos nas faces. Guardou os pergaminhos no malão e integrou-se na rotina. Semanas depois era perfeita a uniformização republicana.
O herdeiro real trazia ao peito um brevet de pilotagem dos helicópteros da Sud-Aviation, tirado, ao que se disse, nos céus da doce França. Mas na esquadra não havia helicópteros. E andava o pessoal a deslindar a lógica daquilo, quando se soube que vinha proibido de executar missões de voo. 
Porém, o que ele não tinha era génio para ficar preso ao chão. E o mais frequente era vê-lo, de máquina de filmar a tiracolo, num simpático riso de boa pessoa, pendurar-se nos voos de reconhecimento. Não havia bombas em questão, a manobra era supostamente menos violenta, e um tal tipo de missão permitia observar o terreno em mais detalhe. Lá ia ele, encostado à tampa da cauda do Dornier, câmara em riste e dedo engatilhado, pendurado nos janelões laterais.
Uns tipos mais jacobinos cediam à tentação de lhe colar o diafragma às tripas. Era a sua pobre tomada da Bastilha. Mas sabiam muito bem como são desconfortáveis certas manobras de voo, na condição de saco de batatas. E rodavam infinitamente sobre a mata, esmiuçando clareiras, procurando trilhos, violando a intimidade escura da floresta. Então exageravam na insistência, forçavam o aperto duma volta, metiam um pé traiçoeiro, na esperança de ver a majestade, de entranha revoltada, lançar a carga ao mar. Qual quê?! Lá ia ele, rubro e alegre como as lavradeiras patriotas, enchendo filmes daqueles verdes de arrasar!
Meses passaram, o príncipe tinha feito o seu contacto aéreo com as imensidões da pátria. Para as deslocações terrestres dispunha ele de robusta viatura, com uma estranha matrícula da Europa Central. A pintura já pouco mostrava da brancura original, coberta por múltiplas camadas do pó vermelho das picadas. Mas ele recusava-lhe as lavagens. Ao mesmo tempo criava um ar disponível, e defendia a chapa das mordeduras do sol.
Dedicou-se então aos périplos terrestres. Percorria as sanzalas da Camabatela, dos sertões do Golungo, à procura de algum resto de poder gentílico. Falava com velhos sobas de alíneas surpreendentes do tratado de Simulambuco, visitava amigos da Causa onde quer que algum houvesse, refugiado no bucolismo duma roça de café. E discutia as vantagens da criação das tilápias na alimentação dos bailundos contratados.
Numa dessas excursões tive eu a dita de lhe fazer companhia, quando aguardava saída para Lisboa após um acidente grave. E pela mão dum velho fazendeiro, que trazia na lapela a barretina dos meninos da Luz, iniciei-me nos segredos do cafeeiro, nos cuidados que pede, nas ferrugens que o atacam. Vi a vasta camarata onde passavam a noite os contratados, e como na cantina ali ao lado entregavam os salários, na boca duma dívida que era uma serpente, e se reproduzia à maneira das cabeças da hidra mitológica.
Regressado a Lisboa, nunca mais voltei a Angola. E do príncipe herdeiro dos Braganças nunca mais tive notícia. Não soube dos resultados da campanha pacificadora, nem sequer se ela cumpriu os planos dos estrategas e mereceu qualquer medalha de serviços distintos. Ia jurar que alguns a terão ganho com menos boa vontade.