terça-feira, 1 de março de 2016

Milagre e Dulce

Com usufruto ao meu amigo Esperança, que não sabe onde é a Angónia mas penou lá perto.

O Milagre tinha mais fé na Senhora da Saúde, e na caçadeira que tinha lá em casa, do que em milagres propriamente ditos. Mas houve um em que chegou a acreditar. Foi quando um parente vago o chamou de muito longe, para ir para a Angónia governar a vida. O Milagre até ficou entusiasmado. 
E lá vivia, à beira duma picada que atravessava a fronteira, numa cantina do mato em que comprava e vendia. Mas faltou-lhe uma mulher, e a Dulce foi ter com ele. Era branca, era macia, e tinha os lábios carnudos duma cereja vermelha. Quem se perdia a mirá-la eram uns pretos que passavam, e embasbacados ficavam. De horas em quando o Milagre tomava-se de razões, de ciumeiras. Mas encontrou solução: ia por trás, de varapau nas unhas, e abria fontes vermelhas nas carapinhas.
Um dia tudo mudou. Vieram ventos de raiva, muito antigos, vieram tiros de longe, do sertão, e más notícias duma rebelião. Era o mundo que ruía. O barulho dos canhões aproximou-se, da janela já se ouvia, e o Milagre resistia. Porque o mundo endoidecia.
Até que se tornou tarde demais, quando o Milagre se viu no meio do terreiro, atado ao tronco da mangueira grande. E lá ficou três dias amarrado, quem lhe valia era a Dulce, que o ia ver, lacrimosa.
Um dia os pretos retiraram-no da cruz e sete vezes lhe cuspiram aos pés. Depois daquilo mandaram-no embora e ele foi. Levado pela mão da Dulce, que o mundo só começou a valer quando a Eva entrou no paraíso.