domingo, 12 de janeiro de 2014

O último maçaricão-esquimó 2

         (Cont.)
        Quando clareou a penumbra da noite sobre o Árctico e mais um dia de Junho começou, primeiro com um vermelho pálido e depois um amarelo vivo, o maçaricão reconheceu finalmente, mil metros lá em baixo, a familiar curva do rio debruada de gelo. Nessa noite voara oitocentos quilómetros através da tundra plana e uniforme, sobre muitas curvas de rios que podiam confundir-se com esta. Sentia-se esgotado mas sabia que só agora estava em casa. Tinha as pontas castanhas das rémiges e das tectrizes em desalinho, após uma viagem migratória que começara abaixo dos trópicos e terminara sobre estas planuras escalvadas, num voo ininterrupto. O instinto do acasalamento rugia nele.
            O maçaricão abriu as asas e deixou-se cair em glissagens laterais. Pedaços de gelo rosados, a flutuar no rio acastanhado, aproximavam-se vertiginosamente. Então interrompeu a picada e desceu em voo planado até ao chão. Pousou na margem lamacenta dum charco de esmalte, um pouco afastado do rio.
            Os maçaricões chegam aqui em Junho, desde há milénios, para defender a reserva e os seus locais de nidificação. Na tundra desolada aguardam febrilmente as fêmeas, esperando que elas procurem aqui um companheiro para este ano. E, durante o tempo de espera, mal conseguem aliviar o instinto de acasalamento nas lutas com os vizinhos, pela defesa da reserva que escolheram.
            Na exaltação do regresso a casa, o maçaricão mal se lembra de que ficou assim, misteriosamente sozinho, durante três longos verões. Insaciado, o fogo do acasalamento acabou por se extinguir por si próprio, depois de ele ter ficado longas semanas solitário. Inexplicavelmente nenhuma fêmea veio ao seu encontro. Porém, dominado pelo instinto, o cérebro do maçaricão não sabia, nem perguntou porquê.
            Voara dez horas sem descanso, e agora o corpo exigia-lhe alimento com urgência. A pulsação rápida e os processos metabólicos, que durante longas horas tinham mantido os poderosos músculos das asas em movimento, pediam muita energia. Começou a remexer a lama com o bico. Era um bico singular, adequado a este modo de procurar alimento. Tinha mais de seis centímetros de comprimento e era encurvado para baixo, à maneira de uma foice. O maçaricão abria-o levemente e arrastava na lama a ponta delicada, em pequenos movimentos circulares, para tactear as larvas moles de insectos e crustáceos. Era um processo muito rápido, e o bico entrava e saía da lama tão depressa como a agulha de uma máquina de costura.