quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O último maçaricão-esquimó 8

(Cont.)
        Alguns dias mais tarde, a reserva perdera toda a excitação. O maçaricão-esquimó elevou-se no ar e voou um par de horas na direcção do Sul. Quando sentiu fome poisou num terreno pantanoso, onde um rio desaguava num grande lago. Vindas da tundra a caminho do Sul, chegavam em bando, como todos os verões, as narcejas velhas e novas e os pequenos maçaricos-das-rochas. Pilritos de longas pernas passavam sobre a margem do lago, em oscilantes formações em V. Ele parou de comer e soltou um grito excitado. Este modo de voar, estas formações, só podiam ser de maçaricões. Passavam em formação cerrada e moviam-se tão exactamente como se todos eles formassem um corpo, como se um único centro nervoso controlasse todo o bando. Mantinham as asas curvadas para baixo e desciam para o solo em voo planado. O maçaricão-esquimó correu ao seu encontro. Mas, depois de algumas passadas, parou de repente e continuou a comer, indiferente. Os outros eram maçaricões-norte-americanos, e ele reconheceu-os pelos bicos mais curtos e pelas barrigas cor de cabedal.
            Não sabia que os recém-chegados, muito parecidos com ele, voavam mais lentamente, e que, por isso mesmo, não eram companheiros de viagem adequados. Também desconhecia que as narcejas jovens só um pouco mais tarde adquiriam força suficiente para a longa viagem, e eram deixadas para trás pelos pais. No entanto elas seguiam-nos instintivamente ao longo da perigosa rota de doze mil quilómetros, que iam fazer pela primeira vez. Os modelos de comportamento, fixados através dos genes de numerosas gerações, apenas diziam ao maçaricão o que ele tinha que fazer, sem lhe esclarecer os motivos. O seu comportamento não era definido por decisões racionais, mas por reacções aos estímulos do ambiente. De bom grado se teria juntado a um bando migratório. Mas os maçaricões-norte-americanos não provocavam nenhuma reacção no seu cérebro, e por isso continuou a procurar alimento, quase sem olhar para eles. Quando levantaram voo mal deu por isso. A terra estava cheia de ruídos de asas em movimento, e o maçaricão ficou de novo só.
            Durante a tarde, o pântano ficou salpicado de narcejas que interromperam o voo e esgaravatavam o lodo em busca de alimento. A maior parte mantinha-se agrupada por espécies. E, com a chegada do crepúsculo, os bandos abalaram, um após outro. Só o maçaricão ficou. Os outros comunicavam por pequenos trinados, organizando as suas formações na escuridão que se instalava. Por uns momentos rondavam a mil metros por cima da tundra, até que rompiam para Sul. As narcejas viajam sempre de noite. Digerem rapidamente, consomem muita energia, e durante o dia têm que procurar alimento. Durante as migrações, o seu alto consumo de energia só pode ser satisfeito através da exacta regulação do tempo de voo. Ele tem de terminar logo que amanhece, mal as aves podem começar a alimentar-se.
            Lá no alto, por cima de si, o maçaricão ouvia as fracas vozes ciciadas das aves que se dirigiam do Árctico para outras paragens mais quentes. Nas margens dos charcos começavam a formar-se cristais de gelo. O instinto do maçaricão-esquimó proibia-o de voar sozinho. Porém, quando lançou à noite fria um chamamento estridente, ninguém respondeu. E era tempo de partir.
            Elevou-se na aragem, procurou encontrar o ângulo mais favorável, com o bordo de ataque das asas levantado e o bordo de fuga descaído, até sentir finalmente a corrente ascendente. Na família das galinholas, o maçaricão dispunha das asas mais adaptadas a um voo fácil e rápido; eram longas, estreitas, e graciosamente terminadas em ponta. Mesmo quando ficava parado, de asas abertas, no vento suave da noite, era transportado pela aragem como se não tivesse peso. Lançava-se agilmente para o ar com o impulso das pernas, dava duas batidas de asa para obter estabilidade de voo, e elevava-se quase sem esforço. Durante mais de um minuto subiu na vertical, até que a tundra desapareceu lá em baixo, no cinzento do crepúsculo. Depois manteve a altitude. A velocidade aumentou, e ele voava com batidas mais leves e mais lentas. O ar sibilava à sua volta e comprimia-lhe as penas contra o corpo. A viagem tinha começado. Mesmo o seu cérebro primitivo e simples sentia vagamente que o caminho indefinido, estendido diante de si por dois subcontinentes, era um corredor da morte. Nele não havia misericórdia, apenas ameaças de tempestades, de inimigos, da própria morte. No entanto, antes de a tundra inóspita mergulhar na névoa do horizonte, o maçaricão pressentiu levemente que o impulso nupcial havia de chamá-lo no próximo ano. Na Primavera voltaria a esperar pela sua fêmea, quando os musgos e os líquenes do Árctico ficassem verdes outra vez.

                                               O  CORREDOR  DA  MORTE



            ... Apontamentos de Lucien McShaw Turner, até agora não publicados, sobre as aves da baía de Ungava... Não vi nenhum maçaricão-esquimó, até à manhã do dia 4 de Setembro de 1884, quando regressávamos da foz do rio Koksoak. Um bando enorme, de várias centenas de exemplares, voava em direcção ao Sul...
(Cont.)