O que salva globalmente a revista LER nº 130, e lhe justifica o preço exorbitante, é um notável exercício de inteligência e imaginação, de saber e capacidade discursiva, de domínio exemplar da nossa língua.
Trata-se da Breve História da Literatura do Baixo Tâmega, de que Bruno Vieira Amaral nos dá notícia e amostra surpreendente, em meia dúzia de páginas, embrulhada nos véus duma ironia tão sedutora quanto eficaz. "Secada por Teixeira de Pascoais e Agustina, esses gigantescos eucaliptos literários, a literatura do Baixo Tâmega começa finalmente a mostrar ao mundo (...)".
Um exemplo, de entre os muitos vates esquecidos de GONDIÃES, de FERVENÇA, de MONDIM DE BASTO, do ARCO DE BAÚLHE, de CAÇARILHE...
«Fernandes, neorrealista
(1915-1963)
BAIÃO
O neorrealismo, a exemplo da açorda e do Partido Comunista, nunca se deu bem por estas zonas. É verdade que Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô, também no concelho de Baião, mas para enveredar pelo comércio intelectual com o demónio vermelho teve de rumar a sul. A falta de condições naturais para a prática do neorrealismo não impediu alguns entusiastas deste desporto radical de o praticarem, adaptando-o, contudo, ao seu contexto social específico.
O exemplo mais flagrante será o de Fernandes, professor primário e autodidacta que, depois de aprender alemão sozinho, tentou traduzir O Capital, de Marx, tendo desistido por volta da primeira página por, de acordo com as suas palavras, "não perceber nada daquela m...". A sua simpatia pelos comunistas era conhecida de toda a população, que não se incomodava muito com isso; "cada um é para o que nasce", diziam, e a prova da tolerância do povo é que ainda só lhe tinham incendiado a casa duas vezes. Também lhe tinham dado um terrível enxerto de porrada mas nesse caso não tinha sido por razões políticas mas por motivos religiosos, visto que alguém disse que, ao passar em frente da igreja de S. Tomé de Covelas, Fernandes não se teria persignado.
Insensível a estes apelos um tanto abrutalhados para que corrigisse o seu passo, Fernandes, agente provocador, publicou um livro cujos 50 exemplares logo foram queimados numa cerimónia presidida pelo pároco de Frende e que esteve para contar com a presença do bispo de Braga. A acção do livro - Fogo na Planície - decorre na região do Tâmega. Sem se saber como, uma família de camponeses alentejanos aparece subitamente em Amarante. Ao ver aquela família desamparada, a percorrer as ruas à procura de pão, um jovem idealista e extraordinariamente parecido com o autor ajuda as crianças lendo-lhes excertos de A Mãe, de Gorki. Os petizes logo esquecem a fome e, com os rostos iluminados por um sorriso de esperança, tentaram tomar de assalto a câmara municipal e assassinar um GNR à dentada.
O segundo e último livro de Fernandes - Ventos de Mudança - ainda se insere na linha neorrealista, embora o paralelismo estabelecido entre um poderoso capitalista minhoto e Jesus Cristo, S. Francisco de Assis e Gandhi, levante algumas dúvidas quanto à pureza ideológica da obra.»
Já o frontispício acima vem a muito outro propósito: a publicação de As Primeiras Coisas, há uns três meses atrás. O jovem autor chama-lhe romance. Mas é pena que não chegue a sê-lo, digam o que disserem dele as vozes entendidas.
É grande pena. Porque a longa série de quadros de que um narrador faz uso, para dar a vida e a morte ao Bairro Amélia ali na margem Sul, tem lá dentro matérias de fazer inveja: conhecimento, ilustração, sabedoria, imaginação criadora que o autor não confunde com as frequentes fantasias infantis, e ironia e sarcasmo impenitentes, e harmonias musicais e ritmos de virtuoso, e um respeito sem mancha pela nossa língua, e um domínio invejável das artes narrativas.
Pronto, está bem, a literatura e a arte são reflexo de mais vastas realidades. E é sabido como o mundo de hoje é puro espelho do caos. Mas há-de haver maneiras de o dizer, que terão que ser inovadoras, para não serem inúteis repetições do já visto. Nem impliquem concessões ao relativismo cabotino que aí anda, muito cosmopolita, a fingir estéticas muito modernas e sempre descartáveis, a vender gato por lebre, ou a contar-nos a vida tal como ela é. Há disso alguns exemplos na paisagem literária, infelizmente não muitos. Mas Bruno Vieira Amaral não se dá ao trabalho de as criar.
Um romance por força será diferente duma manta de retalhos, feita num velho tear. Por que há-de ficar-se pelo rabecão, quem tem unhas para tocar uma guitarra? A pressa é má conselheira, muitas vezes.