Estava ali caído no cimento, rai do bicho, enrolado no veludo das patitas a servir de capacho. No caminho dos carros e das correntes de ar, onde alguém por força havia de passar. Julguei-o um bicho doméstico vitimado pela crise, a morte duma dona... De modo que ele arriscou a janela da garagem e aguardou, descaradamente à espera de algum madrugador. Rouquejava uma gosma que me pareceu fatal.
Aconcheguei-o a um canto e fui-me aconselhar. O bicho estava a morrer, melhor seria levá-lo ao consultório e ajudar-lhe o passamento. Mas voltei a encontrá-lo no meio do cimento.
A jovem veterinária desenhou-lhe o perfil de macho dominante. A bochecha façuda, a cicatriz na cara, dois cortes na orelha... eram medalhas de guerra dum campeão da rua. Diagnosticou-lhe a coriza das vias superiores, injectou-lhe na coxa um elixir e guardou-o numa jaula. Não era caso de morte, avisou, maternal. Pediu-me uma semana. E o preparo custou-me uma fortuna.
Quando ela telefonou eu fui saber novidades, que a decisão era minha. Sofria de sida, o pobre, tinha a leucemia dos felinos, engordara como um marajá. E retomara tiques do tareco doméstico que já voltara a ser. Rebolava-se no chão, prometia o cetim da barriga em trejeitos dengosos, uma beleza e uma rebaldaria. Caso voltasse para a rua não chegava ao Natal, mas um dono aberto e complacente podia garantir-lhe anos de vida. A única questão era arranjar-lhe um lar.
A decisão era minha e não tardei a tomá-la, em vista das mais-valias garantidas por tão fraco investimento. Pois se albergo Epicuro ali no oratório em lugar de destaque, e às vezes me confundo com o patrono, não me é menos pesada e verdadeira a tentação impudente duma costela hedonista. E mais suspeito, com estes ventos à solta, que a lição de mais proveito e bom exemplo me há-de vir dos apuros de estoicismo, que este filósofo carraga no currículo.
[Texto revisto]