Era preciso e urgente desacreditar o Sócrates, um tipo que apareceu aí vindo das berças e dava mostras de ser capaz de pôr em causa o estado das coisas.
Era preciso que o Sócrates fosse um aldrabão licenciado ao domingo, para ser igual aos iletrados da Lusófona, da Lusíada, da Moderna, da Atlântica, da Internacional, da Portucalense, da Independente e doutras semelhantes, igual a todos os Relvas que começavam a enxamear na paisagem da doutorice e hoje governam o país. Dum Sócrates aldrabão é que eles precisavam e foi nisso que o transformaram, na cabeça da opinião pública. Para relativizar, e justificar, e branquear os restantes. Não é o comité central que ainda hoje segue o dogma de que são todos iguais, venha o diabo e escolha?!
Era preciso que o Sócrates fosse um vigarista que vendia favores a meio mundo, um corrupto que recebia envelopes castanhos por baixo da mesa, para autorizar os Freeports que aparecessem. Era preciso relativizar, na cabeça do povo, o escroque Dias Loureiro, o Oliveira e Costa, o Caprichoso, o Arlindo de Carvalho, o Joaquim Coimbra, o Daniel Sanches, o Isaltino, o Duarte Lima, esses e os Cavacos todos, os Ângelos, os Mendes, os Catrogas e os quejandos, toda a escumalha que nunca fez outra coisa pela pátria senão governar a vidinha.
Era preciso deixar nas entrelinhas que as altas instâncias da Justiça eram coniventes e cúmplices do Sócrates. Só por isso é que ninguém o acusava apesar das evidências, só por isso nunca ninguém o condenou, apesar dos esforços duns patriotas, magistrados em Aveiro.
Era preciso que o Sócrates quisesse empalmar a TVI através dos paus-mandados da PT, para controlar a imprensa e a comunicação social, para calar a heroína Moura Guedes, para instaurar a "asfixia democrática" da dama Ferreira Leite e do guarda-nocturno Pacheco Pereira.
Era preciso que o Sócrates fosse um mentiroso patológico, que até aldrabou o respeitável Parlamento a propósito duma merda qualquer. Foi para averiguar um tal assunto que uma ilustre comissão de deputados (fascistas remodelados ou nem tanto, marxistas aflitos, leninistas órfãos, maoístas envergonhados, madraços todos eles), andou meses a masturbar-se em grupo à custa da paciência da pátria. Antes de concluir por fim que o Sócrates era um mentiroso patológico.
Era preciso que o Sócrates tivesse montada uma central de propaganda que vivia de aldrabices e truques de marqueteiros, e alimentava o governo pela mão do Silva Pereira, e do Santos Silva, e outros.
Era preciso que o Sócrates fosse um megalómano doente, que arruinava o país com utopias inúteis, como planos tecnológicos, energias alternativas, apoios à ciência, estradas modernas, alta velocidade ferroviária, eficácia dos docentes e modernização da escola pública.
Era preciso que o Sócrates fosse um intratável arrogante e paranóico, incapaz de algum diálogo e consenso. E durante seis anos foi assim. Porque o Sócrates chegava à Assembleia e metia num chinelo, em oratória clara e em conhecimento, os bandos de inúteis diletantes que se apresentavam ao debate.
Era preciso que o país se livrasse do Sócrates, para ter credibilidade nos mercados. Nem era bem o governo, nem o Mariano Gago, nem a Lurdes Rodrigues, nem o Luís Amado, nem o Teixeira dos Santos, nem o Vieira da Silva, nem outros pobres coitados. Era o Sócrates o fulcro do tumor e o objecto do ódio. Tão desacreditado internacionalmente estava o Sócrates que não paravam de subir os juros da dívida, e ninguém era capaz de satisfazer a gula da matilha das agências de rating, a não ser escorraçando o Sócrates para preservar a nação.
Era preciso recusar o PEC IV que o Sócrates acertara com as instâncias europeias para responder à crise, em boa parte resultante das políticas contra-cíclicas recomendadas pelas instâncias da Europa. Era preciso impedir um tal modo de enfrentar a borrasca financeira que o sub-prime dos banqueiros de Wall Street ofereceram ao mundo.
Era preciso recusar o PEC IV porque "há limites para os sacrifícios que se podem exigir aos portugueses". Isto afirmou, nesse tempo, de coração condoído, a múmia que ainda está asilada em Belém.
Era preciso que viesse a troika, que o Sócrates não queria, mas acabou por chamar. Todos os cabrões rugiam que já chegava tarde. Para oferecer à oligarquia antiga a oportunidade, o programa de reformas e a cobertura de que ela precisava. Para pôr de novo o povo todo a pão e água, conforme lhe competia, conforme determinara a finança internacional.
Naquele tempo, a comunicação social mercenária alimentou-nos a ignorância e a cegueira. E nós fizemos, ao eleger o Relvas, o pouco que ainda faltava fazer. Não é esta a vez primeira, em longa história, que um tal absurdo acontece. Vem à lembrança o Infante D. Pedro, o príncipe das sete partidas, que à falsa-fé matámos em Alfarrobeira em favor da oligarquia aventureira. E o Damião de Góis, que empurrámos para a lareira em Alenquer, em favor da Santa Igreja. E o Marquês de Pombal, que ostracizámos e ainda hoje execramos em segredo, em favor duma e da outra. Fora os mais que aqui não estão.