segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

HAJA LUZ - 19

Ford Madox Brown, Trabalho, 1865
[Clicar]
«(...) Na pintura não há tempo, e portanto não há movimento. Há, como na fotografia, instantes congelados. Por isso, aqui, o trabalho é virtual, isto é, possui um carácter potencial. Quem admira um quadro fica à espera que a cena se anime, como no cinema. É o que acontece na obra-prima de Ford Madox Brown, Trabalho (1865) - um verdadeiro compêndio do trabalho e da estratificação das classes sociais. (...) Obviamente inspirada na Escola de Atenas (1510) de Rafaello Sanzio, até no formato arqueado - Brown andou associado à Irmandade Pré-Rafaelita de pintores - a obra representa a apologia victoriana do trabalho. (...)
Um grupo de cabouqueiros musculados afadiga-se a abrir uma vala, algures em Hampstead, um distrito de Londres. Enquanto dois deles vão extraindo terra às pazadas, um terceiro emborca uma cerveja. (...) Vendedores ambulantes há vários, desde o andrajoso e efeminado florista irlandês, à esquerda, à vendedeira de laranjas sentada debaixo da árvore, à direita. (...) A venda, tal como o trabalho, pode ser activa ou passiva. Na curva da estrada, à direita, homens-sanduiche anunciam qualquer coisa com os seus cartazes. No centro pode ver-se também o comerciante de cerveja, marreco e de baixa estatura. (...)
A ocupação não é inocente. Naquele tempo a cerveja era uma bebida bem mais saudável que a água do poço ou da fonte, esta em geral contaminada pelas imundícies dos despejos, lançados no campo e na via pública, um pouco ao deus-dará. Epidemias de febre tifóide e cólera eram frequentes. (...)
Sistemas separados de água e esgotos começaram a ser instalados. Percebeu-se que esgotos ao ar livre wcontaminavam a água das fontes. (...) É este o pano de fundo que justifica a azáfama do quadro de Ford Madox Brown. Mesmo assim, as novas e melhores condições de salubridade não impediram que Albert, o príncipe consorte, viesse a morrer de tifo em 1861, deixando a Rainha Victoria inconsolável para o resto da vida.
Voltando à pintura de Brown: o trabalho que não suja as mãos nem cansa os pés também está representado. Como era da praxe, os ricos vestem respeitavelmente de escuro. Na extrema direita dois sujeitos observam a cena. Representam os intelectuais, cujo trabalho faz a felicidade dos outros. (...)
Ao fundo, a cavalo, vê-se um abastado membro do Parlamento britânico, de chapéu alto, acompanhado da filha. Há também imigrantes irlandeses, outra vez reconhecíveis pela predominância do verde no vestuário.
Em primeiro plano, um grupo de quatro crianças sujas, órfãs de mãe (como se vê pelas fitas pretas que adornam o bebé ao colo da irmã) estendem a mão à caridade dos outros - a última forma de trabalho para quem não pode ou não quer trabalhar. A mais velha, que não terá mais do que dez anos, veste um vestido da mãe, ou mais provavelmente duma alma caridosa. Magra e escanzelada que é, o vestido de adulta desdobra-se e quase lhe escorrega pelos ombros desnudados. À esquerda o irmão do meio rói uma cenoura, enquanto o mais velho, à direita, fez alguma tropelia que levou a irmã a puxar-lhe os cabelos.  (...)
Afinal esta pintura contém não um, mas muitos instantes congelados. Narra uma época. Com base neste quadro, poder-se-ia construir um romance como os de Charles Dickens. O tempo saltara da novela popular e entrava nas artes-plásticas. Ao contrário dos Gregos, os victorianos exaltavam o valor ético do trabalho. Para eles o trabalho - qualquer trabalho - enobrecia. A virtude do trabalho manual funcionava nos dois sentidos. Para o operário era uma ferramenta de promoção, que lhe permitia subir na escala e classe social. Quanto ao intelectual, a prática de mesteres como a carpintaria ou a mecânica temperava-lhe a vaidade, punha-o em contacto com o mundo real, fazia-o sentir-se útil. Isto deu no movimento das 'Arts & Crafts', ou Artes e Ofícios (artesanais).(...).»