Mais leve que o ar
«Lá mais atrás deixei esquecido um dos convidados para a festa em honra do poeta Robert Burns: o toscano Vincenzo Lunardi, secretário do embaixador do rei de Nápoles em Londres e um dos primeiros aeronautas. A era das subidas e viagens em balão - outro resultado da pneumática - tinha sido inaugurada em França pelos irmãos Montgolfier a 4 de Junho de 1783, utilizando ar quente. (...) Lunardi efectuara a primeira viagem em balão em Inglaterra, voando de Londres para Standon a 15 de Setembro de 1784, usando um balão de 32 pés de diâmetro (cerca de 10 metros) cheio de 'ar inflamável' (hidrogénio). (...)
Mas teriam sido os irmãos Montgolfier os primeiros a voar em balão? A dúvida persiste, até porque houve um famoso antecedente em Portugal: o projecto dum aeróstato em forma de pássaro - a lendária 'Passarola' - do padre brasileiro Bartolomeu de Gusmão, por alcunha o 'Voador'. (...) A 8 de Agosto de 1709 fez subir a quatro metros de altura um pequeno balão de papel pardo grosso na Sala dos Embaixadores da Casa da Índia, perante D. João V e o núncio apostólico, o futuro papa Inocêncio XIII. Os testes continuaram com balões de maior envergadura, constando que a dita Passarola chegou a voar da praça de armas do Castelo de S. Jorge em Lisboa até se despenhar no Terreiro do Paço.
Infelizmente a história não passa dum boato, e a verdade é que não se sabe se a Passarola chegou mesmo a ser construída, ou se não passou dum mero projecto utópico.José Saramago recriou a experiência numa das suas obras-primas, o Memorial do Convento. O romance gira à volta duma dupla construção: a do Convento de Mafra por um lado, e a montagem da Passarola pelo padre Gusmão, na quinta (expropriada) do duque de Aveiro a S. Sebastião da Pedreira, por outro. Ajudam o padre na sua tarefa os protagonistas da história - o maneta Baltasar Sete-Sóis e a sua mulher Blimunda Sete-Luas.
O Memorial é uma obra profundamente musical. Saramago notou que o compositor Domenico Scarlatti - o Escarlate - era um contemporâneo exacto do padre Gusmão, e que estivera ao serviço da corte de D. João V de 1720 a 1724. (...) Daqui a ligar a música de Scarlatti à Passarola vai um passo. (...)
A música, porém, não se limitou a Scarlatti. Ao ler o romance, o compositor Azio Corghi viu nele um Orfeu no feminino. (...) Blimunda passa o resto da vida a correr Asseca e Meca e olivais de Santarém, à procura do seu homem - qual Orfeu em busca de Eurídice. A ópera de Corghi, com libreto do compositor e do escritor português, veio a chamar-se Blimunda, e estreou-se no Teatro Lírico de Milão em 1990. No ano seguinte voou até ao Teatro de S. Carlos, em Lisboa. (...)
Quanto ao padre Gusmão, a história verdadeira regista que teve um fim triste. Intrigas de corte e perseguições inquisitórias levaram-no a fugir a pé para Espanha em 1724, vindo a morrer na penúria em Toledo, nesse mesmo ano. (...)»