A mesquinha propina no seminário do Fundão permitiu ao autor
escapar à condição de servo da gleba, num trato em que perdeu um amigo e ganhou
outro. O que perdeu foi um cavalo baio, que um doutor qualquer tinha na estrebaria
e andava precisado dum palafreneiro. O que ganhou foi o Cícero das
Catilinárias.
Passados três anos já Deus Nosso Senhor o despedia, pela voz
do cónego vice-reitor. Porque na vida é assim, muitos serão os chamados mas
poucos são escolhidos. E o autor aproveitou, em vez de emigrar para França, para
acabar o ensino secundário no Liceu Nacional da Guarda, em 1963.
Foi piloto militar durante muito tempo, em Angola salvou o
pêlo à justinha, na Guiné acompanhou a agonia demente do império. E a derrocada
dele trouxe ao autor enormes benefícios, isto porque Deus não dorme e faz boas
escolhas, e sabe escrever direito em linhas tortas.
Das múltiplas peripécias de 1975 havia de resultar o
afastamento do autor das lides profissionais, num processo que o levou à
demissão, acusado de deserção por um Torquemada qualquer. Foi assim que o autor
se licenciou em Letras, fez um mestrado em Cultura Alemã na Uninova, e passou
anos a dar aulas apaixonadas.
Mas tudo se recompôs vinte e tal anos mais tarde, por
decisão dum juiz que acordou bem disposto e pôs tudo em pratos limpos. O autor
voltou ao seu lugar no quadro dos pilotos aviadores, e ficou a saber o que é um
coronel de aviário.
Desse tempo há textos seus em várias antologias da guerra
colonial, quando ainda lhe não era muito clara a linha de fronteira entre um
escritor e um escrevente. Em 2002 publicou O Mensário do Corvo. E ganhou com
ele aguda percepção de que os embondeiros fazem mais falta nas paisagens do
mundo do que nos escaparates duma livraria, transformados em papel inútil.
Em 2007 publicou As Aves Levantam contra o Vento. E, graças
a mão amiga, ganhou a consciência de que escreve. Depois disso assumiu a
liberdade e o risco de continuar a escrever. De consciência tranquila, enquanto
Deus Nosso Senhor quiser.