Ora este era o
pequeno património que me restava da família, e guardava para mim um vasto
significado emotivo, a despeito de algum desvalor intrínseco. Pedi o parecer
dum paisagista, que em boa hora me aconselhou a reconversão agrícola do espaço.
Sem ajuizar, por certo, das metamorfoses a que me ia sujeitar.
Havia que fazer
opções. E não sei se foi a antiga preocupação de dar de comer a um milhão de
portugueses, ou se foi a minha costela pagã a lembrar-me que nem só os deuses
merecem um bom vinho. O facto é que não demorei a plantar uns bacelos que
arranjei no mercado, após o que tratei de me associar a uma destas agremiações
da lavoura de qualidade, que há muito me habituara a reverenciar.
Logo na primavera,
estavam os bacelos a abrolhar os primeiros gomos, começaram a sair-me coelhos
da cartola. Havia um qualquer instituto no ministério da agricultura, que
pagava generosamente o arranque das cepas. E eu, moderno empreendedor, tinha
que ser pragmático. Meti os catrapilos a arrotear o terraço, e ainda me sobrou
capital para investir num parque de máquinas. Comecei logo por um jipe samurai
de tracção integral, e passei a deslocar-me ao centro da cidade em viatura
própria, liberto das indigestões da carris.
Eu era agora um
empreendedor, como já ficou dito, e tinha o terraço devoluto. Frequentava os
seminários da grape, à procura de entender, entre o tinto e o patanegra
alentejanos, os meandros daquilo que toda a gente chamava a política agrária
global. Por alguns anos, e enquanto, salvo seja, ia apalpando o terreno,
apostei na cultura das oleaginosas, que funcionava de modo tão simples quanto
surpreendente. Eu lançava as sementes à terra, e garantia logo a correspondente
subvenção. Porém, sendo os gastos da colheita superiores ao valor do produto, o
destino da plantação era mirrar-se lentamente, até se desfazer ao vento. Ficava
eu livre de trabalhos vãos, enquanto o fundo de garantia se encarregava de
manter-me em equilíbrio os orçamentos.
Esta espécie de
pousio havia de ter como efeito uma notável melhoria dos solos, a tal ponto que
me abalancei à cultura de frutas mais especiosas. Apresentei um projecto de
plantação, cuja subvenção a fundo perdido incluía um sistema de rega
científico, inventado por judeus do deserto. E embora mais adequadas às
neblinas da nova zelândia, as plantas resistiram à escassez de águas e
mostravam considerável vigor.
Passados três
anos, a primeira produção foi tão fecunda que o mercado recusou absorvê-la por
inteiro. A situação era de vera catástrofe, não havia estações de armazenamento
para acolher tanta fruta, esgotou-se a capacidade nacional de produção de
embalagens. Apoiado pela grape, exigi a intervenção do governo. E a resistência
obstinada do ministro, a quem alguns jornais chegaram a imputar infames
antipatriotismos, acabou por ser-lhe fatal às coronárias e à carreira política.
Mas não há fartura
que em fome não venha a dar, conforme o outro diz. Logo no ano seguinte, chegou
em maio uma tardia onda de geadas negras, e as belas promessas dos pomares
foram-se murchando e acabaram mirradas. Reclamei do governo a declaração de
calamidade, e consegui apoios de emergência que me pouparam à falência.
Mas ficara-me da
fruta um sabor desconsolado, depois de ver como a geada perturbara o estado
vegetativo dos pomares. Ainda fiz umas podas extraordinárias, umas empas de
recurso, ainda apliquei umas caldas de aquecimento mas nada valeu a pena. E eu
era agora um empreendedor, volto a dizê-lo propositadamente, tinha que fazer
opções sustentadas de investimento.
Foi assim que me
entreguei à produção de leite. Apresentei os planos num instituto do
ministério, e logo vieram uns catrapilos a instalar a pastagem, quando nos
estábulos se afinavam já os equipamentos de automatização. Chegaram por fim
umas dúzias de vacas frísias, que eram um consolo para a vista.
Foram dois anos
que me deixaram saudades. Isto antes de os tipos de bruxelas reduzirem
drasticamente o subsídio à produção, e antes de os galegos terem entrado no
mercado, parecia a dada altura que o rio minho se fizera leite.
Foi por então que
tive que vender a casa de férias no algarve, antes de entregar um projecto de
reconversão à produção de carne, que me evitou males maiores. Em boa hora se
foram as frísias e vieram as charolesas. Havia no ministério um fundo de apoio
por cabeça, e os técnicos agrícolas vinham controlar os efectivos, volta não
volta. Eu recebia-os pela manhã, na adega, com tinto e patanegra da amareleja,
e a tarde passavam-na no terraço, embrenhados em observações de campo. Dava uma
trabalheira transferir nessas noites o efectivo para a marquise, onde eu tinha
montado um cenário de pastagens alpinas, a vistoriar no dia seguinte. Mas as
contagens finais resultavam generosas, e foi graças a elas que a exploração
floresceu.
Um dia fui ajeitar
o penso às charolesas, e dei com elas a dançar a polca, cheias de cortesias. O
veterinário fez-me o diagnóstico à mesa do café, as vacas tinham enlouquecido.
Estalara a moda na inglaterra, quando os cientistas quiseram obrigá-las a comer
os antepassados.
Caiu-me o queixo
de estupefacção, e fiquei dois minutos a benzer-me. Mas o homem adiantou logo
que estava criado um fundo para abate. E eu aproveitei-me dele para trocar o
todo-o-terreno e abandonar o ciclo produtivo.
Por uns tempos
ainda estive tentado a reconverter-me à floresta, usando um fundo de
modernização. Mas tenho-me limitado a ver arder as matas dos vizinhos.
***[Eco de 2002]
***[Eco de 2002]