Eu não queria acreditar no que via. O decrépito estado do corcel
jogava a seu favor, mas só me conformei ao ouvi-lo jurar pelos santinhos que se
chamava cá-vai. É que nem toda a gente conhecerá o pormenor. Ainda infante,
trotava el-rei nos corredores do palácio, montado num rinchão de pau amarelo,
cá-vai cavalo, cá-vai cavalo. Um dia o jesuíta privou-o do ginete, enquanto ele
não rezasse as penitências, e o infante nunca mais recuperou do trauma. Mal se
viu armado cavaleiro, logo baptizou desse nome o corcel predilecto.
Não me restava escusa, entendereis pois que eu tenha ficado
pregado à calçada. Mas logo aproveitei para saber da batalha de alcácer, onde
cada cabeça dá sua sentença. O velho ginetre não precisou de muita corda para
começar a falar, e foi assim que disse.
Passado a vau o uéde mocassim, mandou el-rei assentar arraiais e
pernoitar. Castelhanos na hoste havia muitos, e terços de italianos e teutões,
gente azougada que por toda a santa noite folgou e tangeu alaúdes, só não
entenderá quem nunca respirou os túrbidos ares das campanhas de além-mar.
Na manhã seguinte, à hora da alvorada, o arrebol apareceu
ensanguentado. Pediu el-rei ao céu um compasso de espera, perante o mau agoiro,
mas logo uma vasta moirama começou a agitar alfanges e estandartes por detrás
da colina fronteira. Ainda uma vez el-rei mandou suster o levantado afã, mas a
tropa já lá ia, só já pôde gritar cá-vai cavalo.
No meio de tão desencontrados falares, ninguém percebeu a
algaravia suplicante dos perros de mafoma, enquanto morriam como pardais. Mas o
pior foi a grande hecatombe que viria depois, quando a hoste do mulei almélico,
nos finais da manhã, tomou posições na charneca. Foi tarde demais que alguém
deu pelo enredo, afinal o mouro aliado é que provara o vigor dfas nossas
lanças.
Ora se é verdade que um engano qualquer um
pode ter, ademais perante perros que são todos iguais, assim embrulhados nas
jilabas, não é menos verdade que ninguém vai à ceifa depois de fazer a malha,
rematou sagazmente o velho pégaso. Ninguém nos pôde ali valer, e quando el-rei
deu de peito num virotão certeiro, começou a escorregar-me pela ilharga e foi
morrendo devagar. Ao ver assim a pátria moribunda, eu fiz cara ao deserto e dei
às de vila-diogo, de venta aberta às aragens de arzila.
O velho corcel tinha o indiscutível ar
sisudo que assumem os cavalos quando falam da história. Mas eu não podia
aceitar uma cartesianice destas, já via os meus melhores mitos a naufragar. E
logo eu, que todas as noites acendo um archote à janela, para alumiar el-rei
que há-de chegar na escuridão. Há dias em que é melhor não vir à rua. Corri a
alimária do pátio à sabrada e nunca mais acendi o farol.
[***Ecos de 2002]
[***Ecos de 2002]