Eu era ainda puto quando a minha mãe me trouxe ali para o bairro, havia pretas de luanda a trabalhar a dias, malta de cabo verde nas obras da ponte, uma confusão do caraças. Todos os dias andava por ali uma chusma de malta ao cheiro do produto, alguns vinham mesmo ressacados, pareciam zombies a apanharem do lixo restos de algodão, caricas de frascos, bocados de limão. E eu sempre me dei melhor com a malta que se ficava por umas ganzas, curtia umas linhas uma vez por outra e aguentava-me como podia, era conforme dava a grana.
É tudo sempre uma questão de grana, de papel, aprendi-o desde cedo, a vida era difícil e eu tive que começar pelo mais simples. A chavalada da secundária passava lá ao fundo na azinhaga, era aconchegar-lhes ao pescoço uma seringa qualquer apanhada do lixo, e era vê-los largar os telelés, as parcas, uns pintores, às vezes os jeans com que tapavam o rabinho.
Quando a bófia começou a rondar o sítio, era tempo de mudar de estratégia e dar de frosques. E um esticão a preceito, lá para são paulo, se o tipo da gilera estava disponível, não tinha que saber. Ora velhotas a cair da tripeça, ora madamas que se punham a armar ao herói, e que lá tinham de ir ao chão.
O chato é que a certa altura os dias são todos parecidos, e um tipo quer sempre mais. Tive que me iniciar com quem sabia nas artes da gazua, e cheguei a um ponto em que bastava chegar ao pé do fiat, rosnar um abracadabra e ficar a ver a porta abrir-se, cheia de respeitinho. Mas a certa altura já ninguém aceitava as bodegas dos leitores de cassetes, as bodegas dos rádios antigos, a certra altura já ninguém aceitava mesmo as bodegas dos carros. O que os chefões queriam agora era materiais modernos, digitais, leitores múltiplos, com altifalantes surraunde. Mas isso vinha trancado nessas fortalezas que chegaram aos montes da europa, com fechaduras de cofre-forte, imobilizador electrónico e lugar guardado em garagem. Aí as coisas complicaram-se.
Houve uma noite em que cheguei a embarcar numa loucura. Uns tipos totalmente passados, que já tinham estado num reformatório, chegaram ali numa bomba vermelha que ficou na rua a trabalhar um ror de tempo, por causa da chatice da ligação directa, enquanto se combinava o trabalhinho. Havia uns gajos que tinham caçadeiras de canos serrados, e um preto que vinha lá das colónias andava com uma pistola de calibre de guerra, um tipo encaixa um balázio daqueles no peito e vai desabar a metros de distância, foi o que aconteceu ao gasolineiro nessa noite. A coisa até rendeu, só que eu achei aquilo artilharia demais para mim. O meu forte foi sempre a leveza de meios da guerrilha, por isso voltei à táctica da seringa. Um betinho qualquer, uma caixa multibanco, dois tiques de ombro a meu modo, era vê-los a digitar o código e a abrir mão do saldo disponível.
Mas já se sabe que a concorrência em demasia dá cabo do mercado. Todo o bairro andava num desassossego, e os tipos da televisão ninguém os calava sempre a assustar o pessoal, sempre a exigir policiamentos, vigilâncias, superesquadras. E foi no alargamento dos quadros que achei a solução do duplo emprego. Fui admitido num concurso para a bófia, desde então trabalho de dia num campo e de noite no outro. A situação melhorou, não se pode dizer o contrário, não fora a chatice da esquizofrenia e eu não queria realmente outra vida. É que de dia sou clandestino a singelo, porque não posso dizer o que faço à noite. E à noite sou clandestino em dobrado, por não poder dizer o que faço, nem de noite nem de dia.
Ultimamente tem-se falado muito do regime de exclusividade para toda a malta, parece que sempre é verdade andar meio mundo a enganar outro meio. Eu não sei ainda o que vou fazer, é preciso ver bem em que param as modas. Em todo o caso, o pior de tudo será andar no meu trabalho, uma noite destas, e dar de caras comigo mesmo, com a farda da autoridade. Não é que me tem andado a passar a cena pela cabeça?!
[***Eco de 2002]