Durante anos vira andar por ali milhares de pretos a fugir à
frente de esquadrões de catrapilos, que removiam as terras onde iam enterrando
o melhor do orçamento da nação. E quando chegou um dia ao largo o clarão dos
foguetes das inaugurações, logo uma antiga intuição lhe disse que não era de
esperar grande coisa daqueles senhoritos de mão fina, que gastavam os dinheiros
do país e se pavoneavam nas televisões. Mas passou um tempo e ele acedeu a dar
uma vista de olhos, sem lhe passar pela cabeça a reviravolta que a vida ia
levar.
Logo à entrada se deixou agradar da grande luz daquilo tudo,
parecia-lhe esta uma aldeia como todas deviam ser, aberta à claridade azul do
rio, onde o céu largo se espelhava. Havia nas construções uma harmonia que não
sabia explicar, uma graça nas formas das coisas que o tocava por dentro e o
deixou pensativo, à medida que foi andando por ali, até as pernas lhe dizerem
que não. Nas ruas e nas encruzilhadas não havia buracos nem charcos, qualquer
um podia andar ali de olhos fechados. A gente era mais que muita, de cara feliz
por aquelas alamedas, e não se ouviam ruídos frenéticos, não se viam lixos no
chão, nem garrafas vazias a rolar pelos cantos.
Havia multidões por todo o lado e ninguém se atropelava, ninguém
escarrava no chão, ninguém destruía os bancos dos jardins, ninguém ultrapassava
ninguém nas filas de espera, e quase se podia jurar que toda aquela gente
pagava os impostos com orgulho. Respirava-se ali uma civilização, qualquer um o
podia sentir, e o aníbal caracol ficou tão assombrado que já não sabia em que
país se achava.
Nesse primeiro dia a noite chegou depressa e o aníbal caracol não
regressou a casa. O corpo doía-lhe tanto que se acomodou no recanto dum
edifício qualquer. Passou a noite em grande agitação, sem saber muito bem que
terra e que gente era esta que o cercava. Sonhou que alguém tinha alargado as
fronteiras da exposição, e que, por milagre, a vida era assim em todos os
lugares. Mas, quando acordou e se achou desenganado, tomou a decisão de nunca
mais voltar ao país cabisbaixo, incivil e caótico, que sempre conhecera. Passou
a viver num esconso da realidade virtual.
O mais duro foi quando a expo 98 chegou ao fim. Mas o aníbal caracol
conhecia as tradições da pátria, sabia muito bem o que em casa se gasta, e já
tinha pronta uma saída. Ao fechar dos
portões de encerramento, enquanto os guardas pastoreavam os últimos
recalcitrantes até ao palmeiral da entrada, lançou-se em abordagem fulminante à
lorcha de macau e zarpou à descoberta do quinto império.
Não teve sequer tempo para enfunar a cruz de cristo. Um couraçado
da marinha meteu-o a pique no mar da palha, interrompendo ali o que estava para
ser um novo mergulho nos abismos cavilosos da epopeia. Eu achei bem. Depois do
que foi a primeira, não é certo acharem-se outra vez os poucos heróis e os
múltiplos vilões que uma segunda havia de exigir. E duvido ainda mais de que
valesse a pena achá-los. Por mim, confesso já que voltaria a desertar da guerra
da guiné, daqui por quinhentos anos.
[***Eco de 2002]